O ENCANTADOR DE ROLINHAS

Todas as manhãs, indefectivelmente, com surpreendente constância, lá estava o seu Joaquim no meio das rolinhas que ele conhecia tão bem e era por elas conhecido.

Um sorriso sempre escorria dos seus lábios, marca indelével de sua simpatia. De olhos miúdos e espertos, sempre trajava camisa de mangas compridas, abotoadas até o punho. Ele dizia que Deus gostava, mesmo, era de ver as criaturas livres como Ele as fez, usando e gozando essa liberdade, porque foi assim que nasceram e assim deviam viver. Aliás, para ele, viver sempre pareceu ser uma alegria mansa. Seu rosto, cortado em dezenas de rugas, trazia o histórico do homem que viveu do trabalho duro do campo, onde fazia do gesto de lançar sementes ao seio da terra, um verdadeiro ato de fé na bondade divina.

Todas as manhãs, lá estava ele! Passam-se os meses, esvaem-se os anos e seu Joaquim tem o mesmo gesto de sempre: esperar pelas rolinhas da praça. Segurando o relógio de bolso, preso à cintura por um cordãozinho de ouro, me dizia: “Tá vendo aquela mais gordinha ali? É a Tica; aquela acinzentada lá é a Guerreira, repare nela, só tem um pezinho. E continuava: “Tá vendo aquela – é a Serelepe. Ela,...”

Com ele aprendi que as rolinhas estão espalhadas por todas as regiões da Terra, com mais de duzentas espécies. Só não ocupam, é claro, as regiões polares. E continuava: “São aves de grande poder de voo, vivem sempre alertas e, ao menor sinal de perigo, levantam voo com tamanha destreza, que embrenham-se nas árvores em segundos”.

Falava-me do arrulho como se, com elas, trocasse confidências. Havia nele, é verdade, uma conatural empatia com a criação divina – tudo pra ele evocava maravilha: o canto das cigarras, o beija-flor, o sabiá, as flores da ixora, a floração do velho ipê amarelo,...

Mas era mesmo apaixonado pelas rolinhas. Todas elas eram, pacientemente, alimentadas por ele, todas as manhãs.

Indiferente ao sol calcinante, lá estava ele. Imperturbável, sempre com o firme propósito que lhe ditava o juízo – estar perto das rolinhas.

O saber era apanágio de seu caráter; parecia sempre receber com humildade as grandiosas lições de Deus, através da mãe Natureza.

Lembro-me bem de um domingo, lindo dia de sol. Lá estava ele e seu violino. Ao longe podia-se ouvi-lo, tocando para as rolinhas. Ao aproximar-me, notei que além do inacreditável virtuosismo, o arco movia-se com tanta suavidade que deixava no ar uma melodia triste, penetrante. Ao redor dele, lá estavam elas, as rolinhas.

Ele tocava como alguém que cresceu rodeado por música, árvores e rolinhas - transbordava emoção. Para seu Joaquim, valia bem a afirmação de Chesterton: “Quem acende uma luz é o primeiro a beneficiar-se com a claridade”.

Assim era seu Joaquim. Abraçado pelo sol da manhã, parecia conversar com as árvores, segredando às rolinhas as carícias da brisa matinal. Todos esses gestos foram, para mim, exclamações de agradáveis surpresas, capazes de paralisar o tempo num momento de beleza, de leveza, de paz.

Diante desse edificante exemplo, deixo aqui a minha comovida homenagem àquele que, pelo acrisolado do seu carinho, pela crença do seu afeto e pela constância do seu gesto, sintetiza bem o que o amor é capaz de produzir. Seu Joaquim foi o que muitos de nós não somos, mas no fundo, gostaríamos de ser!

Na calmaria dessa manhã a neblina, ondulando em flocos densos, trouxe um novo dia e, com ele, as rolinhas da praça, com tristes arrulhos, mas sabem, como eu, que ali sempre palpitará o coração do seu Joaquim – o encantador de homens e rolinhas!