Saindo da rotina

Nada mais lhe restava além de ir levando a vida até que a morte o levasse. Não tinha família, não tinha amigo, não tinha objeto e nem animal de estimação, não tinha ambição, somente lembrança, insônia e tentação.

Ao bem da verdade, só tinha mesmo seus fiéis chinelos de feltro como companheiros. Não se lembrava mais de quando ou como chegaram a seus pés, somente que eram muito antigos e a sola lustrosa de ambos, sovada nas tábuas do piso do velho apartamento deixavam isso bem evidente.

Assim, passo a passo, iam seus fiéis chinelos o acompanhando do quarto para sala, da sala para a cozinha, para outros poucos cômodos mais, sempre com medo de enroscar seus pés nos pés dos móveis, e acabar caindo.

Sentia pavor da possibilidade de cair, pois não tinha com quem contar para se levantar.

Nestas circunstâncias, fez sua peregrinação pelo seu caminho de Santiago de Compostela, dia a dia, por anos, cômodo a cômodo, ora em reflexão, ora recitando alguma oração, ora em lamentação, ora em indignação, ora em pensamento puro e terno, ora em ideia mundana e maldita; assim fez, fez e fez centenas de milhares de vezes.

Naquele fim de tarde de domingo, olhou pela janela da sala e viu que o tempo estava muito nublado. Estava muito frio e, após colocar um velho cobertor sobre as costas, foi até a cozinha e colocou uma caneca de leite para esquentar.

Depois se sentou, pegou algumas sobras de pão do dia anterior, e, mergulhando-as no leite, passou a comer.

Ali ficou a comer lentamente e a pensar. Já havia anoitecido, quando levantou-se da mesa.

Fechou o gás, e foi guiado pelo conhecimento do local e pela penumbra até seu quarto. Não havia motivação para acender as luzes; afinal de contas, não existia nada de novo para se ver.

Sentou-se na cama, fez uma oração sem muita ideia do que continha, apenas levada pelos movimentos da boca, tal quais suas velhas pernas seguiam o movimento dos pés e tudo mais no seu dia a dia seguiam a algo qualquer.

Fez o sinal da cruz e experienciou uma deliciosa sensação de paz no momento que seus chinelos caíram-lhe dos pés, deixando-o num mundo cheio de alegrias e despediram-se para sempre.

Amem!

João Azeredo
Enviado por João Azeredo em 13/05/2014
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