Coisas do Antigo Egito
Ela está ali, deitada diante de mim, imóvel como uma múmia, pois outra coisa ela não é. Que importam os amuletos, as estatuetas, as esculturas, os próprios deuses do Egito? O sucesso da exposição depende da múmia. Há casos de múmias que deixaram visitantes em transe, mas não parece ser o caso. A mim não desperta maior interesse do que o papelzinho que explica como funcionava a mumificação. Imagino os criadores desse método discutindo quais órgãos deveriam retirar do morto e por onde eles deveriam sair. Depois estimando quantos dias deveriam esperar até que os saquinhos de sal despejados dentro do corpo absorvessem todo o seu líquido. Por fim as resinas, os aromas, os perfumes, o pó de serra, as bandagens e o enfaixamento, tudo para que o corpo continuasse com cara de corpo. Estava pronto para enfrentar o terrível Tribunal de Osíris.
E se chamo assim é porque tenho certeza de que eu mesmo seria incapaz de passar por ele. Aos 42 deuses postados diante de 42 portas eu deveria renegar 42 pecados diferentes, mas a alguns deles isto me seria impossível, visto que nesta vida já fiz mal a algumas pessoas, já causei sofrimento, dor e tristeza. Eu hesitaria, e com isso despertaria a fúria dos escorpiões que vigiam cada porta. Por fim, também não creio que o meu coração pesasse o mesmo que uma pena de avestruz, condição fundamental para demonstrar a minha pureza e assim entrar no Paraíso e alcançar a eternidade. Se não conseguisse, acabaria sendo devorado pelo monstruoso cão Ammit.
Mas isso são coisas do Antigo Egito, que já passou e hoje apenas desperta a curiosidade de quem visita a exposição. Nem por isso seus pensamentos são menos atuais: os amuletos continuam fazendo sucesso e a ideia de preservar o corpo para alcançar a vida eterna é o que move técnicas de congelamento como a criogenia.
Apenas a ideia de tribunal parece um tanto ultrapassada em nossos dias: hoje, os deuses são aqueles que dizem amém para tudo aquilo que fizermos.