Suspensão
A janela recorta o dia e a luz demora mais a entrar na gente. Através dela a realidade perde a solidez. Pelo vidro transparente, observo os dias passarem e imagino outros, em que, talvez possa estar do lado de lá. Sinto, daqui de cima, uma vibração diferente: sob a sola dos pés percebo toda a distância que me separa da terra. Adoeço um pouco mais a cada dia, por essa falta de contato com a substância original de todas as coisas.
A cidade é criptonita que suga nossa vitalidade e dá, em troca, conforto. Penso nesta tarde, especialmente azul, minuto a minuto sendo subtraída de mim, de você. A tela do computador queima as minhas retinas. A música das ruas cheira à borracha, invade as frestas do prédio de cimento e as carnes das minhas narinas. O asfalto, novo e deslizante, tirou a melancolia da rua, deixando em seu lugar uma sensação sufocante, além do calor natural, que abrasa o corpo e a mente de quem passa e também atravessa as janelas.
A saída (pra esse beco sem saída) será reproduzir dias amenos na comodidade de nossos quartos. Recompensar nosso tempo remunerado, perdido entre as paredes, adquirindo cortinas de climatização e janelas de ilusão interativa, capazes de suportar em poucas polegadas uma quantia infindável de paisagens e a presença de um milhão de “amigos” que se prestarão muito bem à tarefa de minimizar a nossa solidão (até onde nossos olhos puderem ver).
É para isso que nos permitimos aprisionar, que nos acostumamos a caminhar em suspensão, pelo direito de poder comprar essas coisas todas que bonificam o ônus de estar consciente dessas verdades. Convencidos da capacidade de remediar a danação de nossos dias que, do lado de lá, seguem abafados pelo piche lançado sobre os paralelepípedos, pela dor do azul perdido, recortados pela lâmina fria das janelas.