E POR FALAR EM FLORES
E POR FALAR EM FLORES...
"Até nas flores se encontra a diferença da sorte: umas enfeitam a viida, outras enfeitam a morte." Provérbio Português
A vez primeira que nos apercebemos, ainda que superficialmente, do encanto e da sedução das flores, ocorreu em anos idos, quando do assento aos primários bancos escolares. Silvana, cabelos angelicais, loiros e fartos, a cair-lhe pelos ombros, dedos longos, a ostentar, orgulhosamente, traços da beleza germânica, trouxera à professora Cármen Regina um pequeno feixe de flores: três ou quatro crisântemos e duas azaléias. Talvez colhidos furtivamente. Na lividez das mãos, a candura floral. Nos olhos esmeraldinos, a inquietação juvenil. Não pleiteava favores. Num vaso de vidro, sobre a escrivaninha, florescia o apreço.
Ao debruçar-nos na janela do tempo, assomam memoráveis postais. Vêm-nos, de pronto, rosas, cravos, dálias e antúrios, a enflorar, em férteis e apoucados terrenos, à frente de humildes moradas. Encantavam os olhos, formavam tapetes, e desafiavam nossa resistência em deixá-los incólumes.
Sob os acordes da marcha nupcial, a noiva encaminha-se ao altar. O atraso é previsto. A espera é angustiante. O corpo transpira. As damas de honra e madrinhas sorriem discretamente. O pequeno pajem hesita entre o seguir e o esperar. A nubente deixa o braço do pai e é acolhida pelo noivo. O casal promete fidelidade. As câmeras eternizam efêmeros momentos. A troca de alianças consagra o pacto. O oficiante permite o beijo. Moças solteiras aguardam, ansiosamente, que o ‘bouquet’ de copos-de-leite seja jogado. O mito se renova. Sempre há uma esperança.
O mais alto mandatário do país emergente participa de um encontro no leste europeu. Novas fontes energéticas constituem o tema da confluência. O interesse das grandes potências se sobrepõe. No cumprimento aos atos oficiais, a homenagem ao soldado desconhecido. A ‘corbeille’ reafirma os frágeis vínculos da pomba sobre a águia.
Os atabaques rufam, quebrando silêncios. Pés descalços rodopiam na areia, ao vigor de pontos que exaltam entidades. A brancura das vestes projeta-se à luz das fogueiras. Sobre toalhas de linho: milho, pipoca, galinhas e velas. Vasos de barro armazenam comida dos santos. Pequenos espelhos satisfazem a vaidade do orixá feminino. O rústico batel, carregado de flores, vai singrando as águas serenas. O barco se foi, a chuva se fez, a rainha aceitou a oferenda.
A idade avançada deu fim aos seus dias. Constituiu, ao longo de anos, patrimônio invejável. Os empreendimentos estavam seguros. Novembro, cemitério ecumênico. Dia de finados. Multiplicam-se vendedores de flores: o preço duplica. Comerciantes de túmulos alardeiam vantagens. Os entes queridos não querem só flores. Mesmo assim, um ramalhete de orquídeas assenta-se ao túmulo. A consciência tornou-se mais leve.
O sol deixou-se ficar mais tempo na maciez dos pelegos. Sexta-Feira Santa. Nos campos, homens, mulheres e crianças apanham macela: um dos símbolos oficiais dos gaúchos. Os mais velhos afirmam, confirmam e reafirmam que a colheita, nesse dia, traz mais eficiência ao chá das flores. Os estofos de travesseiros acalmam os piazitos. O aroma é agradável. Dores de cabeça, cólicas e problemas estomacais se bandeiam pra outras plagas. A tradição se consagra.
Fevereiro, sexta-feira, temperatura elevada. Zona rural, propriedade dos Patzlaff/Sievert. Expectativa de, ao anoitecer, termos um deslumbrante espetáculo: florescência de uma dama. E quantas o fazem, sem alarde, no anonimato? Não sabemos mais do que o nome. Pouco antes de ir ao leito, chamam-nos à rua. E o que vimos? E o que sentimos?
Olhos petrificados ante a alvura que inibe a negridão, rendendo penhor à inspiradora Lucina. Dulce fragrância extasiante. Espetáculo ímpar, propiciado pela dama-da-noite, planta de floração noturna. Ocorre nos meses de janeiro, fevereiro e março, após o recolhimento do sol, e chega ao término antes dos primeiros raios da aurora.
Cada botão só floresce uma vez. Esparge inebriante perfume, e atinge, ao redor da meia-noite, o ápice da floração. Ao romper da manhã, a inumação: fecha-se ao mundo, emurchece, e dentro de uma semana tomba, encerrando um ciclo. Após revelar-se, só lhe resta a morte. Mas a persistência alimentará a vaidade e o orgulho a fim de que retorne a uma nova exibição. Mesmo teatro, idêntico cenário, texto análogo, plateia e personagens distintos.
Artista vigorosa, desenvolve-se rapidamente. Prefere o isolamento, quando muito se identifica com pequenos grupos. Não deve estar próxima a dormitórios, especialmente em quartos de pessoas sensíveis e crianças. Muitos a consideram nauseante. As flores atraem abelhas, beija-flores e borboletas. A alva coloração harmoniza-se ao reflexo da lua. Morcegos e insetos a polinizam. Desabrocha a quem lhe fecunda.
A dama se preza: tem seus caprichos: fertilidade de solo, enriquecido com matéria orgânica e regularmente irrigado. Rejeita a salinidade, geadas fortes ou frios intensos.
Certamente, as mãos que oferecem flores, sempre ficam perfumadas. E cremos que para cada ocasião possuem uma linguagem distinta, expressando nossos sentimentos. E assim o são os eternos rebentos quando reverenciam as mães, na visita domingueira. O pai, comovido, diante da mãe, que afaga ao peito o recém-nascido. O jovem enamorado, a renovar juras e promessas. A mãe orgulhosa na formatura do filho. Os soldados portugueses, com espingardas floridas, na Revolução dos Cravos. O noivo orgulhoso, o intelectual agraciado, o imberbe mancebo, com flor na lapela, a cortejar debutantes.
A linguagem das flores não se faz em palavras. Ultrapassa a materialidade, codifica-se no silêncio. Não está somente no desabrochar e fenecer. Quem sabe por isso a confissão de Cartola: ‘...queixo-me às rosas, mas que bobagem, as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti, ai...”
Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - maio de 2014