A melhor coisa que não fiz
Nunca tive uma boa relação com psicólogos – e isto tendo frequentado tão somente três em toda a vida. Numa tentativa de enganar a mim mesmo que meu problema é, de fato, algo que vem desta minha cabecinha oposto a todos os trâmites existenciais e metafísicos aos quais fui sujeito sem que me consultassem de antemão, e ter me tornado consciente dos supracitados trâmites (obrigado, Platão, por me retirar da Caverna – mas, oh! Quem dera jamais tivesse dela saído!), confiei na ajuda destes profissionais na esperança de que pudesse me sentir um tanto menos deslocado da realidade que me cerca, e nas vezes todas tive meus desígnios frustrados.
Não que fosse eu hostil ou rebelde: criado como satanista, ainda hoje me curvo ante o belo mandamento que é “em território aberto, jamais faça mal a ninguém”. Sempre gostei de conversar, e fui muito solícito em responder a qualquer coisa que me perguntassem, mas apesar da conversa e do prazer que esta me proporciona, ao chegar em casa vejo que o mundo segue imutável e tudo ao meu redor quer esmagar-me, e assim será porque nunca quis nascer, e melhor seria se pudesse ao menos escolher quando morrer, afinal de contas. Apesar de tudo isto, porém, nada tenho contra os profissionais do ramo – não posso opinar grandemente sobre a ciência da Psicologia como um todo, pois nada sei a respeito, mas entre um psicólogo e a raça dos advogados, preferiria mil vezes o primeiro.
Para a minha grande tristeza, graças a uma de minhas consultas não pude participar de uma aventura deveras divertida com alguns de meus companheiros do Liceu, no longínquo ano de 2011; desde então, me senti privado de um raro momento de bom humor num lugar que, como já é bem sabido a quem acompanha estas minhas reminiscências (ou seja, um total de uma pessoa só), foi por três anos meu inferno pessoal. Obviamente, apenas sei desta história porque me foi contada um dia depois; sem mais delongas, e tendo feito minhas explicações aos mais obtusos, cá ela segue.
De boas intenções está o Inferno cheio: preocupados com meu “desvio de personalidade”, o próprio Liceu me encaminhara a meu primeiro psicólogo, e admito que meu maior proveito era poder faltar às aulas e ter uma boa dose de prosa, mesmo que caísse em ouvidos surdos. Devo aqui, porém, explicar uma coisa ou duas sobre a geografia do Liceu em si.
A parte interna do lugar, pouco depois dos edifícios com as salas de aula propriamente ditas, era delimitada por um agradável bosque ao ar livre onde os alunos gostavam de passar o tempo durante os intervalos ou se esconder das inspetoras matando aula – e é esta a única lembrança boa que guardo da construção como um todo. Poder me dedicar a meus livros e à minha incipiente carreira debaixo das árvores e respirando ar fresco compensava toda e qualquer humilhação que sofri. Grande parte destas árvores eram frutíferas; lá havia, se me lembro bem, um generoso sortimento de jaqueiras e abacateiros, que na estação apropriada se punha abarrotado de seus respectivos frutos.
Uma camarilha de companheiros meus sentiu vontade, um belo dia, de comer uma das frutas – o que penso que é deveras justo. Por que manter tantas árvores e não permitir que partilhemos de seu banquete natural? Uma jaca imensa de madura chamou-lhes a atenção, e após todo o imbróglio burocrático foi permitido que a colhessem. Como o intervalo estava para chegar ao fim, a refeição em si teve de ser postergada, e após outro imbróglio burocrático cederam-lhes alguns jornais velhos para que embrulhassem a fruta. Um dos colegas se voluntariou a ceder seu armário para que armazenassem a jaca, e o resto da tarde foi passado em grande ansiedade e apreensão. Mal podiam esperar para que, no dia seguinte, almoçassem uma saborosa, polpuda jaca sub tegmine fagi – sonho de qualquer menino colegial de bem. Devido à minha consulta estaria ausente do lauto banquete, mas pior que isto foi o fato de que, no fim das contas, o sonhado banquete nunca aconteceu e eu não pude rir do tragicômico desfecho da saga toda.
Pelo que me foi relatado depois, ao que parece a jaca estava demasiado madura, ou bichada, ou ambos; lapso de julgamento este que custou muito caro a meus colegas, pois, chegados o intervalo e a hora do festim, ao abrirem o armário do companheiro todos constataram que a linda fruta havia se degenerado num cadáver de si mesma – derretera numa solução polpuda indistinta e desagradável de se olhar, que nada deixaria a desejar aos repugnantes restos do Sr. Valdemar descritos por Poe. A decepção unida à comicidade da coisa foi indescritível – só não mais indescritível do que o esforço do zelador para limpar a gosma de lá de dentro, e o aroma de fruta que perdurou até o fim do ano letivo – e que eu próprio sentia. Ah! Ressinto até hoje não ter estado lá.
A mais recente profissional com quem tentei me “tratar” insistia de modo um tanto quanto enervante em como haveria de ser necessário que eu procurasse me distrair com mais atividades prazerosas – apesar de, pelo menos uma vez ao dia, eu já fazer tudo aquilo que me dá prazer, que é ler meus adorados livros, escrever meus textos para a minha assídua plateia de um homem só e ser triste. Da próxima vez, minha ideia de uma atividade prazerosa será “olhar pelo lado bom da vida” e escrever uma crônica – coisa muito mais útil e apetecível do que desperdiçar minhas horas num consultório quando, bem ou mal, há toda uma vida lá fora a ser vivida.
(São Carlos, 15 de maio de 2024)