O Missionário Anônimo

Ontem, tarde da noite, voltando da Faculdade, com a cabeça reclinada no vidro da janela do ônibus, em meio àquela distração cansada, uma cena atípica me acordou do torpor desperto.

O ônibus parou no semáforo numa região que, naquele horário, converte-se numa realidade paralela. Enquanto que durante o dia exibe trabalhadores apressados, transeuntes e vendedores, à noite abriga os notívagos "sem rosto, sem nome e sem voz". Moças em trajes mínimos, paradas na esquina, "sem fazer nada", e que um dia o olhar da minha infância tentou adivinhar porque ficavam naquele local, àquela hora. Outros, homens e mulheres, muito magros, de olhar perdido, dividindo um copo e um cigarro suspeito, remoendo algumas palavras curtas que minha leitura labial não consegue decifrar (afinal, o que teriam a dizer?). No outro canto, um homem de meia-idade, melancólico, sentado sobre um pedaço de espuma, folheando um livro enquanto é observado por um jovem rapaz.

Espere! Folheando um livro? E o rapaz que o observa! Veste-se diferente. Tem aspecto diferente. Ele não remói palavras curtas. Conversa. Diálogos mais longos, com o olhar atento sobre o ser solitário que sequer levanta a vista para mirar seu interlocutor. Apenas "bodeja" alguma coisa quando o jovem eloquente parece instigá-lo mais.

O livro parece ser um acessório didático. Possivelmente, ilustra o que diz o "palestrante". É um recurso com o intuito de prender a atenção do aluno, vítima do desinteresse crônico pela vida.

O discurso é permeado por gestos, as vezes ele toca suavemente seu pupilo. Mas o que realmente me encanta é o olhar... Ah! Aquele olhar! Não é um olhar de pena, de asco, de arrogância, nem tampouco o do desprezo típico que usamos para não enxergar homens como aquele no nosso cotidiano. É um olhar de genuíno interesse. Daquela solidariedade autêntica que não fere, não humilha e não rebaixa. Mas que se põe de igual para igual. Um ser humano a frente do outro. Um irmão a frente do outro.

Não sei o conteúdo do livro. Com certeza, não era uma Bíblia. E se era algum conteúdo religioso, em nada se comparava àquelas "Evangelizações" que mais se assemelham a exorcismos, onde o "bom pastor" evoca o tempo inteiro o nome da figura maligna máxima, para impor a sua "superioridade moral" através do medo, do temor e da censura à iniquidade alheia.

O sinal abriu. Que pena! Tenho de interromper minhas especulações criativas. Mas aquela cena corrida ergueu minha cabeça, expulsou meu sono. Não é uma insônia inquietante. Pelo contrário, trouxe a leveza da certeza de que, nesse mundo, ainda existe gente que se preocupa com gente. Que esse mundo ainda tem jeito!

Feminista de Arake
Enviado por Feminista de Arake em 07/05/2014
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