Começo de mês

COMEÇO DE MÊS

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 07.05.14)

- Da Costeira, moço.

- Da Costeira?

- É. Aqui da Costeira do Pirajubaé. É da Costeira que eu venho, seu moço. Ali que nasci, me criei, casei e vivo até hoje. Sempre vivi ali e não deixo a minha Costeira por nada deste mundo. Por dinheiro nenhum, por nenhum príncipe encantado que apareça. A Costeira é o meu mundo. Tenho tudo ali, até o meu adorado Avaí é vizinho da Costeira, a Ressacada fica logo depois do rio Tavares, antes do aeroporto.

- Sei onde fica o estádio do Avaí, senhora.

- Fica ruim me chamar de senhora, hem? Está me achando tão velha assim?

- Não, senhora, é apenas uma questão de respeito. Afinal, a senhora é casada, acabou de me dizer isso.

- Ah!, agora vens me falar em respeito? Mas quando eu passei não tiravas os olhos da minha bunda. Não tens bunda em casa? Ou gostaste mesmo da minha?

- Bom, convenhamos que ela não estava escondida. Ao contrário: enorme, no bom sentido da grandeza, passou apertada nessas calças brancas justas que revelam tudo dos quadris para baixo, as proeminências harmônicas tanto para as laterais quanto para a traseira, a cinturinha estreita, a barriguinha de casada, as coxas fortes, o tornozelo fino, tudo isso sua roupa mostrava, não fiz esforço algum para poder admirar seus encantos.

- É, vi que o moço nem viu minha cara quando passei antes...

- É porque só tenho dois olhos e eles gostam de olhar ao mesmo tempo para o mesmo lugar. Ficaria estranho, não é verdade?, se um olhasse para cima e o outro para baixo.

- O moço é metido a engraçadinho, não é? Mas eu gosto disso. Pior são os que olham, querem comer a gente com os olhos e depois saem reclamando que é uma indecência um decote como aquele ali, por exemplo.

- Há muitos decotes circulando por aqui hoje.

- Há muita mulher circulando por aqui hoje. Mulheres casadas e bem comprometidas, todas. Nenhuma periguete. Todas mulheres de verdade, não essas falsas imagens enganosas que aparecem nas propagandas, no cinema e na televisão. Tudo, aqui, gente de carne e osso. De carne, osso, manchas, cicatrizes, celulites, papadas, barrigas sobre o cós do shortinho, seios caindo, rugas em volta dos olhos.

- E os maridos?

- Alguns ficam assim meio cabreiros, mas logo se dão conta de que estão reparando nas mulheres alheias, saudavelmente imperfeitas como as suas. O meu, por exemplo, às vezes fica meio enfezadinho. Por isso que dei um jeito de vir falar com o moço: pra dizer que se cuide e seja discreto. Mas ele já melhorou muito, o meu homem. Está mais civilizado.

- Obrigado pelo aviso.

- Hoje ainda me perguntou pela blusa azul. Com efeito, estava sugerindo que eu vestisse uma blusinha bem decotada que deixa à mostra meio palmo de barriga. Eleva e valoriza meus peitos, mas eu queria chamar a atenção para a bunda. Por isso vim ao supermercado assim como o moço viu.

- Estou vendo.

- A gente se produz para aproveitar esses dias em que todo mundo recebeu o salário e sai para fazer o rancho do mês. Vem todo mundo pra cá, a gente passeia um pouco, se exibe um pouquinho, coleciona os elogios dos olhares de admiração e interesse, nossos homens também ficam satisfeitos com os colírios que podem apreciar, não reclamam na hora de pagar a conta com aquele extra que a gente passou 30 dias sonhando e todo mundo confere que cada ser humano é feito de perfeições e defeitos. Depois, quando a gente chegar de volta à casa, a gente coroa o passeio brincando um pouco enquanto os filhos ficam grudados na televisão.

Sem se despedir, deu-lhe as costas e saiu rebolando.

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados. A partir de 26 de agosto de 2013 integra o Conselho Estadual de Cultura, na vaga destinada à Academia Catarinense de Letras, onde ocupa a Cadeira nº 32.

(...) aquele 1965 em que éramos jovens, românticos e puros. Incontaminadamente puros. (...) Havia uma visão do coletivo, que hoje se perdeu, como também se extraviou (ou até soa ridícula) aquele ideia de "salvar a pátria", de interessar-se pelos problemas do País e do mundo porque eles habitavam nossa consciência.

Flávio Tavares, Memórias do Esquecimento