PASSEIO A RETORCIDA

O texto a seguir foi extraído de “Crônicas da Vida Inteira”, livro inédito sobre fatos da minha vida, adaptado para o Recanto das Letras.

PASSEIO A RETORCIDA

Não era somente a trabalho que saíamos não. De vez em quando os padres nos davam um dia de folga, permitindo que fôssemos a passeio aonde quiséssemos. A pé, é claro, na maioria deles. Alguns desses passeios ficaram gravados na memória até hoje devido ao acontecimento inusitado neles registrado. Vou registrar os que eu for lembrando, não, porém, na ordem cronológica precisa, o que seria impossível depois de cinquenta e tantos sem um diário, com o qual nunca me preocupei, pois jamais pensei que um dia eu me pusesse a narrá-los.

Já se tinha tornado tradicional o passeio anual a uma localidade não muito vizinha, chamada Retorcida ou Nereu Ramos. Se não se mudou de lá, tal localidade situa-se entre Corupá e Jaraguá do Sul.

O dia D, ansiosamente esperado por todos era a segunda-feira de Páscoa, pois os seminaristas em peso iam pra lá com armas e bagagens, dispostos a torcer pelo seu time de futebol na disputa ferrenha contra o time local.

Naqueles tempos as leis de trânsito eram mais liberais, não proibindo que se transportassem pessoas sobre carrocerias abertas. Como era um bocado longe, de manhãzinha já apareciam vários caminhões contratados pela redondeza pra ajudar o Camões a levar-nos e trazer-nos de volta.

— Camões?

Ah, eu não expliquei. Camões era o único caminhão do seminário. Não tenho certeza, mas eu acho que era um Ford. Sei lá! Era velho como quê. Como o infeliz só tinha um farol, deram-lhe tal apelido pela semelhança com o ilustre poeta português, que dizem ter perdido um olho numa batalha lá pelas terras da África. Muito bem, vamos então continuar sobre o tal passeio.

Lá chegados, íamos todos pra capela local, onde o coral do seminário repetia a missa cantada a várias vozes, ensaiada e executada no seminário no grande dia de Páscoa. Depois tinha início lá fora um verdadeiro arremate de gado. Nós ficávamos ali, como artigos de feira, expostos à curiosidade pública ou à simpatia dos casais que nos analisavam dos pés à cabeça antes de apartar, é bem este o termo, dois ou três que levariam pra almoçar nas respectivas casas. Os únicos felizardos não submetidos a tal sorteio eram os jogadores de futebol, aos quais era servido o almoço por ali mesmo, a fim de estarem prontos e dispostos cedo pro certame, que começaria assim que terminassem de ruminar o repasto.

Pois na primeira vez que lá fui, aconteceu que foram escolhendo e levando, escolhendo e levando, e eu ali entre os poucos restantes, oco de fome, sem que alguém viesse apiedar-se de nós. Pra ser assim tão duramente preteridos, devíamos estar com cara de glutões. Depois de boa espera, apareceu um casal numa carroça, de onde a mulher gritou sem ao menos olhar pra nós:

— Nós vamos levar três. Podem subir!

Ela nem tinha terminado de dar a ordem, eu corri em direção à carroça. Maldita hora! Enquanto a maioria dos colegas já estava almoçando tranquilamente noutras casas pela redondeza, nós três penávamos, sacolejando sentados sobre sacos de aniagem cheios de batatinhas e cebolas, morro abaixo e morro acima. Nem sei quanto tempo já estávamos naquele martírio sob um sol de rachar, e nada de chegarmos ao tão sonhado almoço.

Eis-nos chegados enfim! Quando pensávamos que seríamos logo chamados pra mesa, a mulher se pôs ao fogão a mexer a polenta. Pra mais ajuda, eu, que já naquela época detestava peixe, pressenti pelo cheiro que meu almoço seria polenta misturada com nada assado. Pois foi isso mesmo: polenta com polenta. Mas bem diz o ditado que gato com fome come até sabão. Eu achei aquela polenta deliciosa.

Pra encurtar a história, quando nos vimos de volta pra junto do rebanho, o sol já tinha sumido atrás dos morros, a turma já se preparava pra volta. Por pouco não perdemos a condução. Do futebol eu não quis saber nem do resultado. Disseram depois que o time do seminário ganhou, mas eu acho que foi por gentileza do time da casa.

Também essa vez chegou pra eu aprender. Nunca mais fiquei sujeito a tal arremate. Nos anos seguintes, à hora do sorteio eu me escondia, a fim de não ser escolhido, pois eu me precavia, economizando partes dos lanches nos dias anteriores, principalmente das tortas da Páscoa, servidas no dia anterior.