EM CASA DO MEU AVÔ

O maior centro de palestra que eu vi foi na casa do meu avô. Todos os dias passavam ali para palestrar com as minhas tias muita gente boa. Um dos nossos palestradores era o seu Raimundo Biana, quando tomava duas ou três canas e soltava a verve, para falar de si e dos outros. A Tia Marica não dava muita atenção a certas conversas frívolas. Uma vez ou outra vinha a velha Maroca falar das suas rezas ou das suas curas e tesourar a vida do próximo. Ninguém da casa do meu avô dava crença a falar da vida alheia e conversar coisas sem sentido. Um outro palestrador vibrante era o Sr. Chico Bevenuto quando tomava dois goles de Parati, ou bebia uns três Conhaques São João da Barra. Eu era um ouvinte certo deste auditório de conversas tolas ao mesmo tempo boas. Ali eu ouvi bons assuntos sobre Antônio Silvino, Jesuino Brilhante, Virgulino Ferreira da Silva e outros grandes bandidos. Quem menos dava atenção aos nossos palestrantes era Tia Marica porque ela não acreditava em fala de matutos, mormente não sabendo ler. A Tia Ana Rosa era quem muitas vezes tolerava este auditório de falácia enganosa e insólito. Muitos termos toscos da língua portuguesa, ainda hoje eu tenho na mente e foram aprendidos ali com aquele povo humilde que nunca aprendeu nada. A fala mais engraçada que eu ouvia era do Seu Raimundo Biana e da Velha Chicó. Raimundo Biana falava sempre e erradamente. Toda expressão do seu Raimundo Biana tinha um erro estupendo. Mãe Maroca, como era chamada também, falava coisas do arco da velha. A Tia Marica não gostava que eu escutasse aqueles termos errados, aquela pronúncia absurda, uma verdadeira cacoépia. Foi ouvindo todo este povo simples falar, que me veio a vontade de cantar repente e também falar como eles. As leituras que eu fazia dos clássicos, não me permitia falar errado, nem fugir da norma clássica da língua portuguesa. Hoje eu sinto uma falta imensa de toda esta gente simplória com quem vivi dos oito aos vinte anos. Ao encetar o caminho do repente, encontrei muita dificuldade de falar a linguagem do tabaréu, cantar a maneira do nosso povo, ou falar como Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré. Eu tenho mais facilidade de entender um texto de Augusto dos Anjos, ou Euclídes da Cunha, do que mesmo entender a linguagem do Grande Sertão: Veredas. O hábito da leitura aos dez anos, fez de mim uma pessoa culta, sem na verdade eu ter passado por curso superior. A Tia Marica não deixava eu pronunciar uma palavra errada e nem dizer um verbo fora do tempo certo. Ainda hoje escuto cantadores de nome falando erradamente e cometendo todo tipo de cacoépia na língua de Luis de Camões. O meu universo imaginário foi castrado por este cenário em que vivi e as pessoas com quem eu conversava. No meu tempo de menino não tinha televisão em cores, nem outra atração ou outro qualquer divertimento a não ser as conversas dos nossos vizinhos, ou alguma vez um parente que vinha da capital a nos visitar. Criado neste meio tosco eu tinha que ouvir muita coisa tola e assimilar tamanhas idiotices. Histórias de lobisomens, mula-sem-cabeça, burrinha de padre, a gesta dos cangaceiros, e outras coisas deste jaez, foram as primeiras enciclopédias da minha vida de menino peralta e órfão. A Velha Chicó, com a sua fala atrapalhada, representava para mim a Velha Totonia de José Lins do Rego, no seu Menino de Engenho. À casa do meu avô foi o meu primeiro encontro de cultura popular e folclórica. Todas estas figuras que mencionei os nomes, ainda hoje povoam o meu espírito de poeta solitário. O velho centro de palestras da casa do meu avô, não existe mais e nem os nossos velhos palestrantes, gente humilde que já fez a sua viagem. Deste passado ingênuo resta somente eu, já um tanto alquebrado pelo tempo devorador, porém ainda escrevendo, com frases poéticas, esta infância libérrima e pobre. O meu primeiro público de cantoria foi todo este povo simples e amigo da nossa gente. Depois de ouvir os meus bons palestradores, fui eu quem passei a palestrar, com a minha gente amiga, ao som da viola plangente. Outra figura que sempre parava para dar um dedo de prosa era o senhor Antônio Quinquim, ou Antônio Rodrigues. Todo e qualquer assunto, que o senhor Antônio Quinquim falava tinha sempre algo sobre o Amazonas ou toda região norte. Dizia o povo de Malhadinha que o velho Antônio Rodrigues, quando novo, tinha estado no Amazonas e trazido de lá muitas feitiçarias e outras coisas estranhas. A Tia Marica tinha nojo da conversa picante do velho Antônio Quinquim. Eu gostava de ouvir a voz rouquenha do velhote tosco e potoqueiro. O personagem mais importante do nosso centro de palestra era o Carias Preto como o povo chamava. Quase todo dia, o Carias Preto tomava dois ou três porres e começava a cantar e falar difícil, sem saber patavina alguma. Zacarias Preto era um carreteiro quando estava bom, porém bêbado não fazia trabalho nenhum. Foram todas essas figuras ingênuas que marcaram para sempre a minha sensibilidade de poeta satírico. Quando vou à Malhadinha, parece-me estar vendo todo este povo humilde e bom.

Poeta Agostinho
Enviado por Poeta Agostinho em 06/05/2014
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