“CADA QUAL COM SEUS CADA-QUAIS!”
Cada geração tem sua própria pedra no sapato;
por isso, os modos de caminhar parecem tão desiguais.
É, no mínimo, bastante complexo, tentar entender a forma de se manifestar da geração atual tendo como base a conjuntura de quatro ou cinco décadas atrás.
O que faltava (liberdade de expressão) para a geração coca-cola excede (chegando a ser considerado um problema) para a geração fecebook. Isso não significa, no entanto, que esta seja uma geração satisfeita e abastada em todas as suas necessidades – apenas as necessidades básicas dela são diferentes das da outra. Favor, não confundir necessidade com direito. É claro que a liberdade de manifestar o pensamento será sempre um direito inalienável e de igual valor para todo ser humano em todas as gerações. Quanto à necessidade, dependerá do contexto. Por mais que a liberdade de expressão ainda não possa ser considerada um direito pleno no Brasil, ela está muito longe de ser uma necessidade negada e, portanto, a ser saciada, como ocorrera durante as duas décadas da mais recente ditadura do país.
É curioso como muitos daqueles cujos pais arriscaram [e vários perderam] a vida em nome da liberdade de expressão do pensamento se mostram, paradoxalmente, tão chocados quando a geração atual lança mão dela exatamente para isso: se manifestar. Ora, manifestação do pensamento é isso: manifestação do pensamento; não manifestação do pensamento que me agrada.
Não é que para a geração face não falte nada; a geração coca é que era privada de tudo. Portanto, para quem não tem nada, qualquer migalha de pão é manjar; porém para quem já tem o básico, atum é apenas sardinha premium. Traduzo: “A gente não quer só comida; a gente quer bebida, diversão e arte” (Titãs). É claro que pra quem foi criado numa geração para qual até a comida era negada, ter o direito de comer representa quase a apoteose. No entanto, para quem isso sempre foi natural, as aspirações certamente serão outras. Talvez seja isso o que está acontecendo com os novos pensadores contemporâneos. Que sentido faria para a nova geração de artistas passar noites a fio queimando neurônios para encontrar uma forma de chamar um governante de tirano, sem vergonha, corrupto ou criticar a polícia de maneira camuflada se ele o pode fazer de modo aberto praticamente em qualquer local e em qualquer horário? Por que só a forma acadêmica e aburguesada de expressão pode ser considerada decente, oficial e requintada? Se para expressar o que realmente pensa, a periferia precisa travestir-se de zona nobre, onde fica a autenticidade da tão alardeada liberdade de expressão? Por que toda a população tem que ser obrigada a escolher apenas entre dois ou três estilos artísticos?
Não se está cerceando a expressão do pensamento acadêmico ou erudito; apenas se está assegurando (ou tentando assegurar) o acesso (também) do popular.
O fim da ditadura – se é que ela acabou mesmo – pode ter saciado (pelo menos em grande parte) a sede de liberdade de expressão, mas ainda faltam muitas outras necessidades, como, por exemplo: a necessidade de inclusão, a necessidade de reconhecimento do valor das manifestações culturais populares, a necessidade do nivelamento econômico, a necessidade de tolerância com o diferente e mesmo o divergente, a necessidade de tratamento igualitário pelo Estado à zona nobre e à periferia, a necessidade de transparência nos gastos do dinheiro da nação, a necessidade de inclusão digital, a necessidade orientação firme para a formação de uma geração responsável, a necessidade da regulamentação e do cumprimento de muitas das leis elementares do país...
A necessidade de comida foi parcialmente saciada com o início do processo de democratização, mas, como bem alertaram os Titãs, “a gente não quer só comida...a gente quer músicas que traduzam os reais sentimentos da população sem as metáforas ( mordaças) obrigatórias da época de chumbo; a gente quer polícia que se possa respeitar e não temer da mesma forma que se teme os traficantes; a gente quer descer da favela para dá um rolezinho no shopping (já que ele não sobe o morro) pra desfrutar do mesmo direito da burguesia de consumir em diferentes ambientes e não ser tratado como bandido apenas pela aparência ou pelo endereço; a gente quer justa distribuição da terra e das rendas do país; a gente quer planejamento e eficiência na aplicação do dinheiro público...”
Não é que essa ou aquela geração seja mais ou menos consciente, mais ou menos alienada... as conjunturas é que são diferentes – cada qual com seus cada-quais.
Cada geração luta contra aquilo que lhe oprime. A geração coca-cola lutou pela liberdade de expressão; a facebook – usando essa conquista de sua antecessora – luta para conquistar o resto.
“A forma mais autêntica de defendermos nosso direito de expressão é respeitando o dos demais”. Chandelli