Sonhos e Cobranças
Calado, guardei, por mais de seis anos, pensando em pôr num quadro, um cartaz da Editora Vida, com uma jarra de plantas e, dentre outras palavras e expressões, os dizeres de 2 Coríntios 9.6: “O que semeia pouco, pouco também ceifará, e o que semeia com fartura, com fartura também ceifará.” E pus. Demorou, mas mandei fazer o quadro. Sou assim, gosto de pensar calado. Não sei se isso é bom ou ruim. É, contudo, o meu jeito de ser. Às vezes, sem comentar com quem quer que seja, fico anos e anos pensando em fazer algo, até coisas simples, que ninguém chega a imaginar. E, quase sempre, faço. Não desisto facilmente dos meus projetos.
É indispensável, contudo, ouvir as pessoas que nos são próximas, pois nem tudo pode ser como se gosta e o que se pensa nem sempre está correto. Vem daí o ser importante e necessário externar a parentes e amigos os sonhos, projetos e coisas que se pensa em fazer, realizar. É o que tenho feito, como ironicamente se diz, “por livre e espontânea pressão”. É que minha mulher me acusava de não pensar sobre o futuro. E, como lhe respondesse que pensava sim, mas pensava calado, ela passou a exigir (com toda a razão, é claro) que lhe declinasse o que pensava sobre este ou aquele assunto. E, assim, foi ficando sabendo que, a despeito de nada haver comentado, já me ocupava do assunto x ou y, havia às vezes cerca de três, quatro ou mais anos.
Todas as pessoas normais têm sonhos: umas sonham mais, outras, menos, mas todas sonham. Sonhar faz bem, porque a vida perde o sentido se já não há sonhos. Aliás, isso me traz à lembrança o verso do poema “A menina do retrato”, de José Sarney, que diz: “Os anos corrompem o sonho.” É verdade. Alguns dos nossos sonhos são realizados, outros são corrompidos ao decorrer dos anos e fenecem, são expungidos de nós. Outros, por sua vez, descem inconclusos à sepultura com quem os sonha.
Mas não é só isso. Descobri com o tempo que alguns de meus sonhos não eram, como não são, somente meus, mas também dos parentes e amigos. Isso às vezes estimula e às vezes faz correr um arrepio nos cabelos e um frio na barriga, pelo peso da responsabilidade e da cobrança que o só lembrar representa. Todos nós temos, com efeito, a obrigação de dar contas de nós mesmos aos parentes e amigos, senão também à sociedade, o que sobremaneira me incomoda e assusta.
Meus sonhos não são apenas meus, como os seus, caro leitor, não são apenas seus: são também os sonhos de outras pessoas, muitas das quais em nada ou quase nada contribuem para sua efetiva realização (algumas até atrapalham e muito). A vida é, a um só tempo, cobrar e pagar: cobra-se e cobra-se; paga-se e paga-se, e, não muito raro, ainda se morre devendo. Há cobranças justas e, portanto, devidas, mas há também cobranças injustas, indevidas, ilegais e absurdas. Pais que cobram dos filhos, filhos que cobram dos pais, cônjuges que se cobram mutuamente, amigos que cobram de amigos, sociedade que cobra até de quem nada lhe deve.
O romance O Sertanejo, de José de Alencar, que tive o prazer de ler em 1979, nos dá um exemplo expressivo desse eterno cobrar e pagar, que acabou em tragédia. O capitão Marcos Antônio Fragoso, um dos personagens, entra em guerra com outro coronel do Nordeste, o capitão-mor Gonçalo Pires Campelo, a pretexto de ter de dar contas de si aos parentes e amigos, defendendo-se de uma afronta recebida, e sofre esmagadora derrota.