Homem Crocheteiro
Era uma coisa de família. Tradição. A avó ensinou à mãe as às duas filhas. Crochê e tricô.
A avó, a mãe e a filha mais velha ficaram peritas na arte de manusear a lã e duas agulhas com tamanhos diferentes como requeria o ponto de tricô. Tornaram-se artistas da linha também com aquela agulha pequena, mas com ponta parecendo anzol para pescar partes do fio da linha.
A filha mais nova não gostava das lãs e das linhas de crochê. Gostava das agulhas pequenas e linha “varicor” para bordados. Fazia sua arte: galhos bordados, pétalas multicoloridas que se destacavam em terceira dimensão da bidimensionalidade do tecido de veludo, seda, ou seja qual fosse a trama. Os miolos das flores e os olhos das pequenas formiguinhas, joaninhas ou qualquer outro bichinho eram bordados de miçangas, vidrilhos e contas imitando pérolas.
No final abandonou o bordado dedicando-se à costura. Na casa havia uma velha máquina de costura, uma relíquia. Como a jovem se desenvolveu àquela “prenda” adaptou-se um aparelho para fazer a máquina funcionar com maior produtividade e melhor desempenho. Começou a costurar para os de casa, depois para as colegas, as vizinhas e foi ganhando fama. Vestiu toda a sociedade da década de 70 e 80 com seus pontos e pespontos. Se morasse em um centro urbano maior e tivesse orientação empresarial teria aberto seu ateliê de costura e em vez de costureira teria sido modista de fama reconhecida. Se...
Ah, não adianta reclamar o leite derramado, pois somos como o nosso tempo nos moldou e como usamos o molde para recortar o tempo.
Lá nos idos e distintos tempos 1960 esta filha moldou um vestido para si – na verdade começaria sua profissão de costureira aí. Sua mãe, irmã e avó foram logo crochetando gola, barra e manga para aquela roupa. Ficou uma coisa bem da época, quase psicodélica. Inovadora. Logo estaria costurando para toda esposa grã-fina de militares.
O menino só podia contemplar estas habilidades porque, como se dizia na época, tudo isto é coisa só de mulher – dons e dotes exclusivamente femininos! E se ele ousasse, ralhavam com ele:
- Larga esta linha e esta agulha, menino! Isto é coisa de mulher!
E estas coisas de mulheres eram intocáveis por meninos, determinava assim o machismo. Machismo ou ditadura das avós, mães e irmãs?
Mas não é que o outro dia o menino que mora no homem que se fez passando bem de manhazinha viu – arregalou os olhos – um outro homem nada efeminado, trabalhador, um operário talvez, com agulha de crochê e linha que saia de sua mochila crochetando com toda sua força: mão na agulha, agulha na linha e a mágica da construção do tecido crochetado.
Novos tempos estes, porque nos velhos teria sido estigmatizado disto e daquilo só porque segurava agulha e linha.
Mulheres com seus machismos e homens – educados por elas – com seus preconceitos. A avó – que só andava de preto – se viva fosse e visse a cena do homem crocheteiro sentenciaria como boa religiosa que era:
-Eu não digo que é o final dos tempos?! Passou mil, mas não há de passar 2000! O mundo está perdido!
Passaram semanas e não é que estas memórias, além de tecer este texto, se materializaram em vestido crochetado exposto no manequim estático de loja. Naquela boneca gigante da loja o moderno se inspirou no antigo fazendo moda atual. E o inconsciente transmuda o tabu de antes em modernidade do agora.
Leonardo Lisbôa,
Barbacena, 29/04/2014.
P.S. : Uma homenagem a minha irmã que muito ajudou e continua ajudando a família com suas costuras e seus serões de madrugada. Aplausos para ela. Sou seu fã.