No instante em que acordo
Desde que passei algum tempo sem celular, e portanto sem despertador, ressuscitei um rádio-relógio que ganhei da minha avó por ocasião da minha Primeira Comunhão. Ainda funciona bem, exigindo apenas um pouco mais de força para apertar os botões do que há quinze anos. Com isso também aproveitei para ouvir rádio, especialmente antes de dormir. Deito-me sem a preocupação de pegar no sono, apenas ouvir uma música suave e deixar o pensamento correr, normalmente na direção de alguma mulher distante. Quando vejo, já não estou vendo mais nada, começo a cochilar e só tenho o tempo de desligar o rádio-relógio.
E tenho dormido melhor, embora admita que aquela luzinha vermelha indicando a hora é bastante atraente e me faz olhar para ela algumas vezes durante a noite. Mas ainda estou dormindo, e dormindo bem, quando o rádio-relógio desperta, não com uma terrível buzina, também disponível, mas com o som de uma música qualquer. Por vezes, quando isso acontece, eu ainda estou bastante atrapalhado pelas lembranças do meu último sonho, e durante alguns segundos eu não faço a menor ideia de quem eu seja. É preciso então puxar pela memória: que tipo de vida eu levo? Que motivos eu tenho para acordar? Tenho que levantar imediatamente ou posso aproveitar mais um pouco? Hoje é quarta-feira ou domingo? Coisas boas me aguardam no dia de hoje? Há alguém que me ame? Tenho um nome de mulher para chamar? Há dores, traumas, carências ou alguma razão específica para sofrer? A tudo isso preciso responder no instante em que acordo sem ainda ter me dado conta de mim. Mas dura pouco, logo a memória já tratou de me recompor com tudo o que sou, inclusive com o que não precisava, como os meus medos e ansiedades.
Dou então um salto da cama e tomo o remédio para a tireóide, que me obriga a acordar sempre meia hora antes de poder tomar café. É aborrecido, mas permite que eu volte para a cama e aproveite alguns minutos, ouvindo o rádio e reconstruindo o que sonhei.