O doente imaginário
Tive um colega na Faculdade de Direito chamado Jucá.
Um belo dia soube que este colega era hipocondríaco.
Outro colega chegou a me dizer que ele se assustava enormemente com a idéia fixa de doença.
Um dia, fiz o teste. Nos encontramos na porta da faculdade: - Então, Jucá, tudo bem? - Tudo bem! - Olha, parece que você está muito pálido, está sentindo alguma coisa? - Estou pálido, mesmo? - Sim, está bem pálido. - Até logo, colega, vou para casa. E ele foi correndo para a casa dele, naturalmente para tomar algum remédio.
Depois, arrependi-me do meu gesto e não brinquei mais desse jeito. Fiz ele perder as aulas daquele dia. Não previ esta consequência desastrosa. Foi uma verificação infeliz da minha parte. O hipocondríaco sofre muito. O Jucá sempre me fez lembrar da peça "O doente imaginário" do grande Molière. Talvez com um sentimento de culpa, lembrando-me do meu colega, registro aqui um pequenino trecho dessa peça clássica e desanuviar o grande sofrimento do Jucá, embora tardiamente e fora do tempo...( mudei alguns nomes, por pura brincadeira). Molière foi um grande crítico da hipocrisia e falsidade humanas. E o intuito dele era mostrar essas verdades, com humor, para divertir as pessoas honestas. Quando encontramos algo belo, ou que vale a pena conhecer ou rever, o impulso sadio é compartilhar com os amigos e amigas. Aí vai o trecho deste teatrólogo notável de todos os tempos:
Ortávio – Ah... querida, obrigado por tomar conta de mim.
BELINHA (Acomodando os travesseiros em torno do marido) – Afaste-se um pouco para que eu
ponha, assim, este de um lado, o outro deste... e nas costas... e este sob a cabeça, assim...
NIETA (Pondo um travesseiro sobre a cabeça de Argan e fugindo) – E este é contra o sereno.
Ortávio (Levantando-se com raiva e jogando os travesseiros em Nieta, que sai) – Imbecil, quer me
sufocar, não quer?
BELINHA – Que é agora? Pelo amor de Deus!
Ortávio (Sem fôlego, joga-se na cadeira) – Ai, ai. Eu não aguento mais.
BELINHA – Por que você se incomoda tanto? Ela só queria ajudar.
Ortávio – Você não conhece, querida, a maldade daquela bandida. Ela me deixou fora de mim, vou
precisar de oito remédios e doze lavagens para consertar tudo.
BELINHA – Ora, querido, relaxa.
Ortário – Meu consolo é você, amorzinho.
BELINHA – Coitadinho dele.
Ortávio – Para mostrar meu reconhecimento pelo amor que tem por mim, eu quero, meu coração,
como já disse, fazer meu testamento.
BELINHA – Não vamos falar disso, querido, por favor. A idéia me faz sofrer e estremeço com a
palavra testamento.
Ortávio – Eu pedi para você falar com o Tabelião.
BELINHA – Está aí fora. Eu o trouxe comigo.
Ortávio – Então faça entrar, meu amorzinho. Faça.
BELINHA – Certo, querido. Mas quando se ama o marido, não se consegue nem pensar nessas
situações, não é mesmo?
CENA VII
Tabelião, Belinha e Ortávio
Ortávio – Aproxime-se, senhor Boafé, e sente-se, por favor. Minha mulher me disse que é homem
sério, além de ser amigo dela, por isso pedi que o chamasse para o testamento que eu quero fazer.
BELINHA – Eu sou incapaz de tocar nesses assuntos.
TABELIÃO – Ela me explicou suas intenções, mas devo dizer que não há nada que possa deixar para
sua mulher em testamento.
Ortávio – Como?
TABELIÃO – Vai contra o costume. Se estivéssemos num país de Direito escrito, isso poderia ser
resolvido, mas em Paris e em vários outros lugares sua disposição seria nula. Todo o bem que um
homem e uma mulher, unidos pelo casamento, se podem dar deve ser através de uma doação
mútua, entre vivos, desde que não haja filhos, seja dos dois conjugues ou de apenas um deles.
Ortávio – Eis um costume impertinente esse de um marido não poder deixar nada para uma mulher
que tanto ama e que cuida tão bem dele. Eu gostaria de consultar meu advogado para saber que
providência tomar.
TABELIÃO – Não é aos advogados que se deve consultar, pois são, em geral, muito severos sobre o
assunto e imaginam ser crime qualquer tentativa de burlar a lei. São criadores de dificuldades e
ignoram os meandros da consciência. Há outras pessoas, mais flexíveis, que conhecem certos
expedientes, que encontram meios indiretos para contornar os problemas. Senão, o que seria de
nós? É preciso facilitar as coisas, do contrário não teríamos profissão, nem poderíamos cobrar coisa
nenhuma.
Ortávio – Minha mulher falou muito bem de sua habilidade e retidão. Como posso, então, dar meus
bens para ela em vez de deixar para minhas filhas?
TABELIÃO – Quer saber o que fazer? O senhor pode
contrair um grande número de dívidas não suspeitas, em favor de diversos credores nas mãos de
quem deixariam uma declaração de que fizeram isso para lhe serem agradáveis. E pode, também,
enquanto estiver vivo, dar-lhe dinheiro ou promissórias pagáveis ao portador.
BELINHA – Não se atormente com isso, meu Deus. Se você morrer, não quero mais ficar neste
mundo.
Ortávio – Querida.
BELINHA – Se eu tiver a infelicidade de perder você...
Ortávio – Minha mulherzinha.
BELINHA – Viver será inútil.
Ortávio – Meu amor.
BELINHA – Morro junto para que saiba o carinho que tenho por você.
Ortávio– Você me parte o coração, amor. Não chore, por favor.
TABELIÃO – As lágrimas estão fora de hora, as coisas ainda não estão neste ponto.
BELINHA – Ah... não sabe o que é ter um marido a quem se ama tanto.
Ortávio – Só lamento, se eu morrer, é de não ter tido um filho seu, querida. DR. PURGANTE me
prometeu que ele me faria lhe ter um.
TABELIÃO – Isso ainda pode acontecer.
Ortávio – Quero fazer o testamento, meu amor, do jeito que a Tabelião diz; mas, por precaução, vou
lhe dar vinte barras de ouro que eu escondi no forro do meu quarto, e duas promissórias ao portador,
uma do Sr. Damon e outra do Sr. Geronte.
BELINHA – Não, não. Não me interessa nada. Ai de mim. Quanto você disse que tinha no quarto?
Ortávio – Vinte barras, amor.
BELINHA – Não me fale mais nisso, eu te peço. E de quanto são as promissórias?
Ortávio – Uma de quatro e outra de seis, querida.
BELINHA – Todo o dinheiro do mundo, querido, é nada perto de ter você. Tem mais barras
escondidas?
TABELIÃO – Quer que façamos o testamento?
Ortávio – Sim, senhor. Vamos ao meu escritório. Me leve, meu amor.
BELINHA – Vamos, queridinho.
"O Rei Sol, à sua morte, não lhe rendeu qualquer homenagem,
prosseguiu na órbita dourada que levaria o regime à
guilhotina. O cadáver do divertido compadre vai para a vala
comum, sans pompe et sans bruit, desprotegido das graças da
religião, para esfarinhar-se no anonimato. Mas, quatrocentos anos
depois, o fantasma vivo deambula nos palcos do mundo, escoa
das bibliotecas, continua a fazer cócegas na mente humana e a
arranhar as feridas da alma. Porque não retratou só o impostor,
o invejoso, o tolo, o mentiroso, o avarento, o pedante, o
intolerante o crédulo, o lascivo, o tedioso, mas esculpiu a Impostura,
a Inveja, a Tolice, a Mentira, a Avareza, o Pedantismo,
a Intolerância, a Credulidade, a Lascívia, o Tédio."
Mas Molière fazia sorrir o sol da nossa galáxia.
Molière- 1622/1673