A noite começa
Há momentos na vida em que te quero silêncio, senhor da solidão que clama o poeta. Mas como não estar entre todos, se nossa vida urbana nos compartilha tanto? O som dos carros e motos, conversa do cômodo ao lado, grito constante, cantar delirante de bêbados felizes ao longe. Tudo compondo a noite enquanto o que escreve não se concentra o bastante.
Quer falar do silêncio em pleno barulho que só pode acabar às três da matina, quando até os andantes se foram dormir numa praça. Quando os vigias já não guardam coisa nenhuma e mesmo a Polícia se resguarda à espera de chamados quase sempre mais graves quando acontecem.
Esse momento, em que a escuridão se traduz em silêncio, é o que mais espera aquele que escreve. Longe de qualquer influência, ouve apenas o inconsciente que trabalha, como se quem o carrega também estivesse dormindo. Diferente do agora, mas sou paciente. Espero o fim de cada detalhe que a madrugada vai tirando pra se construir a penumbra completa da melhor hora da noite.
Assim mesmo, ensaio meus versos em meio às sirenes imitadas em seguida por alguém muito louco passando na rua e marcando presença. Logo depois vem a buzina de outro, que chamando sei lá quem, ainda incomoda um ouvido implicante.
Os cães ainda latirão por algumas horas. Mas queria saber por que as motos de hoje são tão barulhentas quanto o som dos carros de quem não se toca, com um gosto musical tão ruim? Sei lá se isso existe, porque gosto é defeito de todos. Nunca agrada por completo a ninguém mais do que o próprio dono.
Sono, felizmente não é problema. Sem meu antipsicótico vou até amanhecer... De cigarro em cigarro, de carteira em carteira... vou acendendo o fogo com um isqueiro vermelho que já comprei dessa cor por ser a menos preferida de meus amigos. Assim fica fácil identificar quem por engano tem uma porção de isqueiros na casa, levados assim sem querer.
Como pode notar quem ainda acompanha esse ensaio, sou mais louco que chato, pois quando desato... tudo que não gosto me contraria. Tudo me traz o relato dessa noite fria que o vento anuncia, balançando o pé de abacate bem atrás da janela para a qual estou de costas. Nem aquele som da geladeira que começa e termina o tempo todo passa batido e mais um latido.