MERGULHO NO MEU PASSADO

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UM MERGULHO EM MEU PASSADO

Do beco que me viu nascer, do bairro que me viu crescer correndo pelas suas ruas sem asfalto, da catraia que me transportou para pegar água do outro do igarapé do 40, do depósito de açúcar onde apanhava a água em uma torneira colocada aos moradores, nada mais existe. O Beco São Benedito, no qual chorei pela primeira vez, o bairro por cujas ruas andava puxando carrinho imaginário compactador com meu amigo de infância João Couto da Silva, a catraia lenta e colorida que ligava os bairros Morro da Liberdade a Cachoeirinha foram, agora, substituídos por uma ponte, prédios, quadras, parques de diversão e o Igarapé do 40 foi aterrado e por elas só trafegam carros velozes. Não reconheci quase nada, apesar do motorista que me levava à Escola de Samba Reino Unido da Liberdade, Carlinhos Pucu fosse me dizendo “isso ficava aqui”, “aquilo ficava ali”, mas nada reconheci, exceto o antigo que depósito de açúcar ainda existe e resiste, mas também não é mais o mesmo. Era inútil o brincante da Escola ir me dizendo “isso ficava aqui, aquilo ficava ali”, porque pouca coisa eu reconhecia. Olhei para a casa de meus padrinhos, no início da Rua São Benedito, depois virei o rosto para ver se ainda conseguia ver a casa do Leônidas ou do João Couto da Silva, do outro lado da Rua, mas nada existia mais e tudo havia sido “engolido” pelas obras de melhorias sociais do Prosamim e cedido lugar a um progresso que constrói e destrói também!

O Beco São Benedito, agora é o “Beco dos Pretos”, a casa de muitos quartos, que depois da morte de meus padrinhos Natércia e Januário Calado, virou Escola, agora foi demolida e cedeu lugar às obras do Programa Prosamim - Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus que, aos poucos, vem matando por sufocamento os mais tradicionais e importantes braços de rios de águas negras que cortavam minha Manaus, principalmente o Igarapé do 40. Para cruzar o antigo igarapé de minhas recordações, existe uma ponte ligando os dois bairros. Dentro do táxi, tocava uma música suave de uma banda regional de Itacoatiara. Eu escutava o excelente CD que o Carlinhos Pucu me disse o nome, mas esqueci, mas lembro de seu cantor porque já o vi no passado tocando. São muito bons todos os músicos, Escutava a suave música de uma banda regional de Itacoatiara e me admirava por não terem atingido o mesmo patamar de outros grupos que cantam com a “bunda” como dizia o deputado federal Clodovil Hernandez.

Da ponte, avistei as obras do Prosamim e o Carlinhos Pucu continuava me dizendo “isso ficava aqui, aquilo ficava ali”, mas eu estava perdido em minhas lembranças do passado quando atravessava do Morro à Cachoeirinha para apanhar água, no depósito de açúcar do outro lado. Eu me perdia nas lembranças e recordava os bonequinhos correndo para um lado e para o outro como doidos, quando a TV preto e branco de válvula era ligada para aquecer as válvulas e surgir a imagem na tela. Era uma época difícil, mas quem possuísse uma TV em casa, já podia ser considerado um rico porque os aparelhos eram muito caros, A sala na qual lembrava era toda pintada de azul com um lustre bem no centro, oval, simples e pequeno.

Emocionado por rever e não reconhecer mais bairro que meu viu nascer e correr por suas empoeiradas, desci do táxi de Carlinhos Pucu e fui recebido por Ivan de Oliveira, ainda com poucos cabelos brancos, talvez menos dos que os meus aos 54 anos e embranquecidos rapidamente por onze cirurgias no cérebro desde 2006, para tratar de um empiema cerebral. Deixei o hospital presenteado com duas bactérias hospitalares incuráveis, mas controláveis com antibióticos. Acho que sambar lhe fez bem ao amigo Ivan de Oliveira e os medicamentos que me mantêm vivo fazem mal para mim, ou me deixam os cabelos rapidamente mais brancos! Estava retornando para conhecer e participar das festividades pelos três anos de existência do Instituto Reino do Amanhã, criado por Jairo de Paula Beira-Mar e presidido pelo advogado e funcionário do Tribunal de Justiça do Amazonas, Neilo Batista, de cuja união com Rita Castelo, lhe resultaram duas filhas, Maria Vitória e Maria Eduarda, que também integram os quadros da Escola, que estavam presentes na ocasião.

O ex-policial civil que trocou tiros com bandidos, decidiu também trocar sua arma e suas balas por canetas e livros, criando um programa de apoio à leitura em parceria com escolas públicas do bairro, como o meu Adalberto Valle, que me viu cruzar de sandálias ou sapatos que mandava confeccionar no bairro de Educandos, seus portões de ferro por quatro anos seguidos, a Escola Paula Ângela e outras que aceitaram o desafio de incentivar crianças ao hábito de leitura através do projeto social “Samba Lele”, implantado por Ismar Machado, sócio-proprietário da Escola e aposentado pela Petrobras, reconhecido internacionalmente pela ONU, mas desconhecido, inclusive por mim, que comecei a trabalhar profissionalmente como jornalista aos 19 anos e muitas vezes recebi Ivan de Oliveira no Jornal A NOTÍCIA para divulgar ensaios na Escola. Hoje sou assistente social, formado há 17 anos e não tenho desculpa e nem perdão por não conhecer, mas apenas reconhecer que esse projeto social de cidadania existe há pelos menos 32 anos, retirando das ruas através da música, leitura, capoeira, bateria mirim crianças e adolescentes em risco social. Da Bateria Mirim saíram para a Bateria Principal, Igor Emanuel, Ricardinho e o Branner, tocadores de cavacos. Nada disso eu sabia, por isso não mereço ser perdoado! Como eu poderia desconhecer um projeto social de tamanha importância, criado há 32 anos dentro da Escola Samba Reino Unido da Liberdade, dedicado à infância, adolescência e juventude que a tem tirado das ruas e transformando em cidadãos plenos, inúmeros meninos e meninas em situação de risco social e reconstruindo famílias? Como eu poderia desconhecer que o projeto recebera reconhecimento internacional da ONU?

Perguntei por alguns amigos de infância, como o moreno forte Leônidas, “O Leão”, como era conhecido, que protegia meus 28 quilos distribuídos em um corpo esquelético até meus 12 anos de idade. Soube que ele era sócio da Escola, mas não se fazia presente no local. Perguntei por dona Rosa que, com seu esposo também já falecido, era dona do Olaria, um clube social no bairro que se rivalizava de forma sadia com o Libermorro, outro clube que existia no bairro. Soube que Dona Rosa falecera, como falecerei um dia, mas soube também, que seus filhos, Wiliam e Williana, com os quais estudei, casaram e deixaram de morar no bairro. O Ronaldson, que estudava com meu irmão Roberto Costa, hoje contador e professor universitário como já fora um dia, era o único que ainda morava, mas não pude vê-lo como gostaria! Talvez nem me reconhecesse mais porque não tinha muito contato com ele, mas o admirava muito quando passou a ser jogador profissional do Libermorro Futebol Club. O campo do Libermorro não existe mais. No local funcionam serviços médicos e sociais e um Clube de Mães. Também procurei ver a delegacia de polícia, mas nada consegui encontrar. Funcionou nos anos 80, inaugurada pelo Secretário de Segurança José de Matos Filho, no Governo José Lindoso., Fui apresentado a Clênio Franciné, flho da minha professora do Grupo Escolar Adalberto Valle, Célia Franciné, proprietária de uma das primeiras padarias existentes no Bairro do Morro da Liberdade. Agora, Clênio Franciné, também aluno da Faculdade de Direito, é compositor da Escola de Samba. Perguntei por Almeron e soube que o autor do Samba Enredo “Mãe Zulmira, o alvorecer de uma raça”, que deu o título de campeã à Escola em 1989, mas soube que falecera há 3 anos, deixando de presente um verdadeiro hino ao Reino Unido, sobre a raiz negra do candomblé, a resistência da raça e suas tradições e cultura encentrais.

Jairo de Paula Beira-Mar ficou emocionado receber a camisa e contou que me via subindo a Rua São Benedito, com caixa de picolé no ombro ou um tambor de cascalho e um triângulo nas mãos, com uma sandália havaiana nos pés, Lamentou que o Beco São Benedito, onde minha mãe disse que nasci, ter sido engolido também pelo projeto Prosamim e ser conhecido hoje como apenas “Beco dos Pretos”. Tenho certeza que ele possa ter visto mesmo porque era policial civil e deveria trabalhar na Delegacia do Morro, em cuja frente sempre tinha passar todos os dias para cumprir meu ofício porque não ser apenas mais uma boca na casa de meus padrinhos, já tinham numerosos filhos como o Doca Calado, Chaguinha Calado, Gonzaga Calado, Emanuel Calado e muitos outros que o tempo me fez esquecer de seus nomes. A Delegacia do Morro, ocupou um pedaço do campo de futebol do Libermorro, o campo do Barriri, em cujo local, finais de semana, assistia a muitas partidas de futebol com times uniformizados que se duelavam por uma bola e vibravam quando faziam um gol, em uma trave ou em outra. Eu estava na mesa com o diretor da Escola Tomé Mestrinho e sua esposa!

Deixei o Morro com sentimento de orgulho pelo trabalho social que o Instituto Reino do Amanhã realiza, mas frustrado quando Jairo de Paula Beira-Mar cobrou do atual governador do Amazonas, José Melo a promessa que o seu antecessor Omar Azize fizera, exigindo que todas as Escolas de Samba do Grupo Especial de Manaus também desenvolvessem trabalho igual ou parecido de resgate social em suas comunidades, mas seu Secretário de Cultura Robério Braga, que mandou tecnocratas visitaram as Escolas de Samba de Manaus, disseram que no local não teriam condições de desenvolver nada, sendo excluída. A Escola de Samba Reino Unido da Liberdade terá uma nova sede está em construção, com salas de aula e terá condições de desenvolver um excelente trabalho social e prosseguirá o que já realiza em silêncio há 30 anos. A sede e as salas de aula ficarão em uma área do Prosamim na antiga margem do Igarapé do 40, que engoliu uma parte de meu passado também. Meu sábado, dia 12 de abril, cheio de emoções fortes, foi concluído prestigiando o lançamento do livro de Jan Santos, “Evangeline – Relatos de um mundo sem luz”, no Centro de Convivência da Família, Magdalena Arce Dou, em Santo Antônio. Posso garantir que foi um sábado perfeito jeito que costumava acontecer antes de 2006.

carlos da costa
Enviado por carlos da costa em 20/04/2014
Reeditado em 21/04/2014
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