O APELO DE JAMES BROWN

- SHORT STORY PARA CISSA DE OLIVEIRA

O despertador era dotado de um rádio. O seu toque correspondia ao abrir da estação escolhida. Seis da manhã, indicava o relógio. Ainda ensonada estremeceu com o som que, de repente, tomou posse da casa: era James Brown a gritar «I Feel Good». Esfregou os olhos e esticou os dedos dos pés. Uma onda de electricidade tomou-lhe conta do corpo. O lençol parecia-lhe uma prisão, manietando-lhe os movimentos. Saltou da cama para o tapete num ápice e deixou-se levar pelo ritmo, um funky dos anos sessenta que apontava para as nuvens, mas como ali só tinha um tecto creme, enquanto balançava os braços e as pernas, com o tronco em rotação proporcionada, foi lá mesmo que fixou os olhos. Não sabia, inexplicavelmente, se era o quarto que girava à sua volta, ou se era a vontade de dançar que a conduzia nos passos. Apesar de ter muita coisa para fazer, começou pelo duche, ajeitou o pensamento, tomou o pequeno almoço e completou a sua «toilete», surpreendida pela velocidade com que completava as coisas que, antes, demoravam uma eternidade. «I feel good, so good...», continuava o James Brown a trovoar-lhe na cabeça, sentindo-se já desperta para enfrentar o dia. A vida agitava-se-lhe, involuntariamente, pela força da voz do cantor, pela sua junção aos saxofones, às guitarras, ao órgão «hammond», ou tão somente porque precisava de um pretexto para alterar o significado do seu «modus vivendi», a partir de um apelo. Relaxou então, sentou-se no sofá confortável da sala e, correspondendo ao desimporte que tomava conta de si, antes de voltar a adormecer, estendeu-se, agarrada a uma almofada, e desejou não raciocinar sobre o que quer que fosse, em ser apenas jovem, não ter a obrigação de cumprir com os seus deveres de bióloga, de mãe, de professora, de pesquisadora, de mulher, de pau para toda a obra. Até de bom grado abandonava a sua condição de poeta para entrar noutro universo irreal. Via-se correndo por uma praia de areia fina, branca, molhando os pés na água azul do mar, como se não tivesse um passado, um presente, um futuro. Um destino. O seu imaginário divagava pelo usufruto das paixões, pelo prazer e deleite na feitura de um suco de manga para refrescar o seu amor, retornando aos desejos simples de uma existência que se foi complicando só porque optara pela disciplina, pelo trabalho, pelo ram-ram da cidadania, pela recusa do sonho, pela sombra de um quotidiano interdito ao sol e à magia do romantismo. Voltou a acordar, desconhecendo a que contas andava, com o toque impertinente do telefone. Do outro lado perguntavam-lhe porque estava atrasada aos seus compromissos. «Estava doente, sentia-se mal?», inquiria alguém, do outro lado da linha. Ia - algo fantástico se entretinha com os seus neurónios - arranjar uma desculpa. Mas escutou-se dizendo a verdade, traduzindo os versos entoados por James Brown : «eu sinto-me bem, muito bem... Por isso hoje não posso estar aí!». E decidiu não sair de casa. Optara por ocupar-se com um caderninho cor-de-rosa, onde se habituara a agrupar uns poemas. E escreveu, sorrindo no usufruto da sua liberdade de pessoa resoluta e madura, na página em branco: «série JAG - 50».

JAG

14.10.04

Publicado na Revista MARGEM - Câmara Municipaldo Funchal - Detartamento de Cultura - Ilha da Madeira - Organização: António Fournier - Maio 2008.

JAG
Enviado por JAG em 05/09/2005
Reeditado em 13/06/2011
Código do texto: T47701