CONTADORES DE LUAR

Aos patriarcas do outono

Antes que fosse tarde, meses antes de transpor a barreira do octogésimo sétimo aniversário o escritor se levantou da cama bem mais cedo do que o cedo habitual. Nesse dia, o Deus em quem ele não acredita querendo ou não haveria de lhe dar uma forcinha. Afinal, a ajuda divina é ou não é para quem cedo madruga?!

Em poucas horas, revisou poemas, romances, contos, crônicas e ensaios. Depois de organizá-los, os salvou com segurança no computador e por garantia no pendrive.

Tudo isso numa manhã de outono, antes que fosse tarde, tarde demais para continuar vivendo.

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Foram quase 90 os anos de dúvidas aos milhares, afirma o ancião. Para ele, elas são tão necessárias à vida, quanto as certezas, se não mais! No entanto admira o encontro, única certeza do rio e do mar e, sábio, compreende o fim, como certeza do pranto, do riso, do desencanto e da dor.

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Nas noites de segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado e domingo, ainda vejo a lua, afirma. Impossível, nem toda noite tem luar, a menos que você esteja apaixonado, está? Ouço isso desde a mocidade e respondo a mesmíssima coisa, nem sim nem não.

Certeza para mim é o céu sobre a minha cabeça e a lua embutida nele, à mostra, ou não.

De observá-la não me cansei nesses 87 anos comemorados aos seis dias de março. Se for preciso, mesmo doente, ainda sou capaz de afastar tudo quanto é nuvem só para reverenciá-la e dizer a ela que estou aqui.

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Aos domingos pela manhã, aproveitando o silêncio característico de vila, o seu morador mais antigo a plenos pulmões dá tratos operísticos às cordas vocais.

Enquanto a molecada da vizinhança desce de rolimã a íngreme ladeira da rua aprende de ouvido que, a dona é móbile e o barbeiro de Sevilha.

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Cansado de viver com um nó na garganta, o antigo relógio de bolso tiquetaqueou pra lá e pra cá, até libertar-se da corrente no pescoço e tomar pulso de cada segundo do seu precioso e peculiar outono.