Chuvantiga

Seria uma crônica sobre a chuva? Mais uma, dentre tantas, não fosse o fato de que, ao colocar a lembrança no pensamento, senti lavar-me o peito. A pensar assim, comecei:

Numa das ruas do Monte Castelo, seguia um barquinho de papel a correr-lhe pelas águas frias das coxias. Sem pressa, sem pressa, chuá, chuá, imaginava: todas as aventuras do mundo cabiam naquele barco a desmanchar-se lentamente enquanto vaguejante por sobre um céu baço que parecia, na meninice, ser tão grande.

Nas calçadas, buscando as bicas, outros meninos e meninas saltavam felizes a tiritar, braços cruzados ao peito, crentes na simplicidade de uma vida a viver ainda distante, muito...

À praça redonda, as peladas nas areias corriam entre pernas ligeiras. Os menores piscinavam no antigo chafariz de mosaicos vermelhos que nem vi crescer assim como aquelas crianças.

Em volta, pretos guarda-chuvas cumprimentavam-se com bons-dias domingosos; o peixeiro a cantar para as freguesas aos portões; encimando os muros baixos, verdes em limbos, as buganvílias, afirmando um vai-e-vem, dançavam; os cães a ladrar o estranhamento; as chuvas cortinando a varanda; as empregadas correndo a desroupar o varal: “Chega, menina!”; o cheirinho de terra molhada entupia as narinas; os respingos finos no travesseiro que vinham das venezianas do quarto; o tactac repenicado no telhado; o grito do vizinho no alto do muro do quintal; o quintal avermelhecido de acerolas.

Na sala escura o café esperava — passado no pano —, com leite, o pão francês quentinho e a manteiga de lata. O pai, a mãe, os irmãos: nunca a mesa fora tão pequena. Chovi com a chuva a tarde que ribombava. “Mundo, mundo, vasto mundo”... Ah, se eu não me chamasse Raymundo...

Raymundo Netto
Enviado por Raymundo Netto em 06/05/2007
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