Aquele beijo,  ou Ciro Fonseca




 
                               Aquela conhecida  me pegou pelo braço e  foi me empurrando para um canto da esquina.  Deveria ter começado dizendo que estava andando pela rua Direita da minha cidade. Mas tudo bem, vamos em frente.
                                     Os leitores vão notar que o estilo desta crônica, felizmente, se assemelha ao do grande Veríssimo, o que me dá o maior orgulho. E antes de continuar, essa questão de imitar os melhores (sempre saudável) foi abordada pelo também grande Moacyr Scliar, ao dizer que no início de sua carreira imitava todos os maiores escritores, até chegar ao seu estilo próprio. E para exemplificar, contava o caso do cachorro que cantava. O dono do cachorro dizia para um dono de circo que seu cão cantava. E o dono do circo pediu para ver esse fenômeno. E,realmente,  o cachorro cantou.  O circense ficou maravilhado e perguntou como podia acontecer isso. E o dono do cachorro respondeu: - "Não é que o cachorro cante, ele apenas imita o Caruso."
                       Ah!, mas como ia dizendo, a moça, com o olhar afogueado, me agradeceu muito pela dedicatória que fiz a ela. – Mas, minha filha, que dedicatória?  Preciso explicar ao leitor que me lê neste momento, com o  maior interesse,  pelo menos espero, que tenho uma péssima memória.
                               Ela falava do meu livro de crônicas. E não é que eu havia feito mesmo uma dedicatória para ela?
                               Não consigo lembrar os nomes das pessoas que conheço e não tenho coragem de perguntar ao cara, mesmo que o  conhecimento já dure uns    vinte anos:  – "me desculpe,  qual o seu nome, mesmo?"
                               Não, não me interpretem mal. Absolutamente, não é da idade. Desde rapaz  que tenho esses lapsos de memória.
                               Como seria bom que eu tivesse apenas  o problema contado pelo Veríssimo.
                               Não sei se já contei, mas com essa moda de beijar as pessoas na rua, o nosso escritor, não acostumado com esses modernismos, apela para sua esposa, perguntando sempre, quando anda na rua : - está vindo ali a nossa vizinha, eu beijo ou não beijo. Fala logo, ela já está quase próxima. Beijo ou não beijo?
                               A primeira dificuldade do Veríssimo, contado por ele, era beijar alguém na rua. Ele é do tempo em que não se fazia isso. Bem,  ele acabou  se acostumando a  dar o seu beijo, dependendo do consentimento da sua esposa. Daí a sua pergunta: - essa eu beijo , ou não beijo?    Acontece, porém, que a moda mudou. A turma passou a dar dois beijos nas faces. E já estamos na moda de três beijos. Uns até dizem assim: - três beijos, pra casar !
                               Mas a coisa  tem piorado.  Estamos na fase ultramoderna (é o eterno retorno da história da humanidade), os homens deram pra se beijar também. E é aí que  a  história tem um desfecho engraçado, desajeitado,  o nosso maravilhoso escritor,  acabou beijando um padre  na boca...  Essa história li no jornal há meses, se não me falha a memória...
                               Por enquanto estou conseguindo beijar a turma, três beijos cada, mas nas faces, sem errar uma.
                               O meu problema é outro.  É lembrar o nome das  pessoas.  
                               -  Hi! Lá vem aquele meu amigo carioca (com aquele grave defeito de ser fluminense, isso eu me lembro), como é mesmo o nome dele?
                               - não adianta, hoje não vou dizer. – diz o meu companheiro de cafezinho do meu lado.
                               - pelo amor de Deus, ele  já me saudou e vem todo alegre me abraçar, ou me beijar, sei lá!
                               - Tá bom, vou dizer,  só essa vez, hein! É aquele teu amigo da jaca manteiga!
                               - Ah!,  porque não me falou logo!
                               -  Ô Ciro, que prazer em revê-lo, estava  pensando em você, com seu nome na minha boca . Não morre esse ano, hein, amigo?
 


   NOTA: Republico esta crônica,  incluíndo deliciosas menções aos escritores Veríssimo e Moacyr Scliar,   em homenagem aos 300 textos do meu amigo Ciro Fonseca