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Seis Horas da Tarde
 




Ela inclinou-se em direção ao rádio, aumentando o volume para ouvir melhor. Com a interferência, vinham alguns sons de assovios e estalos de estática, mas no meio daqueles sons, podia-se ouvir a voz do locutor com clareza. O crepúsculo iluminava a cozinha, e as luzes da casa ainda não tinham sido acesas. A mulher chama a menina:

-Aninha, vem escutar a Ave-Maria!

A menina desvia os olhos do desenho que passa na TV, dizendo:

-Depois eu vou, mãe. Agora está passando "Missão Mágica."

A mãe aumenta ainda mais o volume, perturbando o som da TV. Insiste:

-Vem ouvir a Ave-maria, Aninha. daqui a pouco, acaba.

Finalmente, Aninha suspira fundo e dá os poucos passos que a afastam da cozinha. Ela olha para fora, pelo janelão que dá para o telhado do vizinho, e vê o céu escarlate que serve de pano de fundo para as folhas de coqueiro que a brisa agita docemente. A mãe está em uma posição engraçada, inclinada em direção ao rádio, cotovelos em cima da mesa. 

O locutor lê uma carta. É uma história muito triste com música de fundo triste, que a menina não compreende muito bem. Ela pergunta:

-Mãe, o que é Ave-Maria?

A mãe faz sinal para que a menina faça silêncio, e Aninha, sentada à mesa, procura entre os feijões pretos algum grão colorido para brincar mais tarde. Ela adorava enfileirar os grãos e fingir que eram alunos, como as professoras faziam com as meninas no pátio do colégio.

O locutor termina a história e a oração, e uma música triste começa a tocar. A menina comenta:

-Que música triste, mãe....
-É linda! É a Ave-maria de Gounod. 
-Eu não gosto dessa música.

A mãe recorda, olhos no céu vermelho:

-Quando eu era interna no Colégio Amparo, todas as tardes nós rezávamos uma Ave-Maria às seis horas em ponto.
-Por que?
-Porque era assim.

Aquela cena repetir-se-ia muitas vezes na vida da mãe e da menina. Aninha já sabia rezar o Pai-Nosso e a Ave-Maria, embora não soubesse o que significavam aquelas palavras misteriosas e difíceis. Ela imaginava uma enorme pomba branca como sendo a Ave-Maria. E o Pai-Nosso tinha a cara igualzinha a do seu pai Sylvio.  

Havia no quarto da mãe, sobre o mármore de um camiseiro, uma imagem do Menino Jesus de Praga. Ela nunca entendia direito como o menino e o homem da cruz podiam ser os mesmos. E também não entendia como a mãe podia rezar para a imagem do menino, se quando ele morreu, já era um homem feito. Um dia, um moço bateu à porta e disse que era crente. A mãe deixou-o entrar, e quando ele viu a imagem do menino Jesus de Praga, pegou-a e jogou-a no chão, dizendo ser "coisa do diabo." A mãe colocou-o para fora e tentou colar a imagem, mas a lampadinha que ficava aos pés do santo nunca mais acendeu, e ficaram algumas lascas faltando, manchando o manto vermelho de branco.

Aninha aprendeu  que seis horas é a hora de rezar uma Ave-maria e escutar aquela triste canção que toca no rádio. Por que? Porque é assim. E hoje ela estava na varanda da casa, quando às seis horas, o som da Ave-Maria na casa vizinha chegou-lhe aos ouvidos, e ela lembrou-se da mãe...


Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 08/04/2014
Reeditado em 08/04/2014
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