O Sonho*
Luiz Carlos ao regressar do trem da tarde, durante o percurso de Recife à sua cidade natal, sentado num dos bancos de encosto-móvel-de-vime, observava pela janela o velho gasômetro, o parque do Exército e a favela do Coque. Assistia o telegrafista da estação de “Fernandinho” entregar, no arco, a licença concedida de um trem de carga, que cruzava com o do Cabo, destino à estação de Cinco Pontas.
O guarda-freios equilibrava-se no passeio por sobre os vagões, como um verdadeiro malabarista. Lembrava-se de que, na maioria das vezes, dava as licenças ao maquinista e ao chefe do trem, sem ser preciso o uso do arco. Era uma prática invejável! E mesmo já não se dava ao trabalho do servente ter que ir buscar os arcos, quando jogados pelos recebedores da licença, além do que muitos meninos escondiam os arcos pelo simples prazer de se divertirem, principalmente por se tratar da estação de Fernandinho (Koch), o triângulo da Rede Ferroviária, entroncamento ferroviário, para passagem de todos os tipos de trem, obrigatoriamente, com destino a Recife. O movimento era superior ao de qualquer outro da ferrovia, mas seus funcionários eram em número inferior, em função da economia do material humano. A “Maria Fumaça” arrotava faíscas de sua fornalha, caindo nos olhos dos que se atrevessem a por a cabeça do lado de fora, geralmente as crianças. A loco apitava sucessivamente ao passar antes dos cruzamentos de automóveis, soltando fumaça em desenhos, através de sua chaminé, deixando pela linha à fora um cheiro saudoso do carvão-de-pedra. Desfilavam os postes com os seus fios telegráficos e as placas em vermelho, com letras brancas, advertindo: P.N. APITE PARE OLHE-ESCUTE.
Chovia! Luiz desce o vidro de sua janela de guilhotina, quando repentinamente, uma brita e cascalhos atingem o vidro, quebrando-o, quase acertando em sua cabeça. Era a meninada faminta do Coque, que tinha como única distração ver os trens passarem. Um de seus dois conterrâneos disse-lhe:
- Cuidado, Luiz, aqui a gente tem que passar com o lado da veneziana fechada, chova ou que faça sol, a educação do povo daqui é diferente da do povo do interior, pois no interior os meninos e os adultos apenas nos dão adeus.
Luiz ouvia, via e calava. Aquilo era uma realidade. Pensava em seu tempo de criança, talvez se houvesse nascido naquele ambiente fosse como aqueles pobres miseráveis comedores de siris.
Um de seus colegas, a fim de fazer hora durante a viagem, contava anedotas como Chico Anísio. Uma delas até que fez com que Luiz sorrisse a valer, sobre um matuto que foi a um programa de calouro na Rádio...(Historietas do livro “Miscelânea Recife”, ed. 2001).
O trem já passava da estação de Lacerda. Luiz dormia. Inicialmente, sonhou sendo preso como comunista, por ter participado de um comício de Prestes, conhecido como “O Cavaleiro da Esperança”. Este sonho era como um aviso profético, que futuramente haveria de se realizar. O local esquisito era como o “Buque” da Chefatura de Polícia. Ora parecia com um quartel da Meganha, onde fora humilhado, colocado na solitária. Aquele sonho parecia real! No isolamento via elementos, da própria polícia, presos sendo maltratados e marginalizados pelos próprios companheiros. Ouvia dizerem aos policiais-presos:
- Vão ser excluídos e entregues à Polícia Civil, transferidos para a Casa de Detenção junto com esse civil safado!
A promiscuidade com os presos de diferentes classes era ridícula. À proporção em que sonhava já se sentia na Casa de Detenção do Recife com seu companheiro José, taxado como pivô das greves e passeatas dos ferroviários, preso como comunista por contrariar as leis, cadavérico, ficando imóvel e tremendo como uma “toyota em ponto morto”. Os meganhas, com as baionetas armadas, afligia-se:
- Meu Deus! Onde fui me meter.
- Isto é uma loucura, eles só sabem fazer leis e não dão os nossos direitos. Me matem!
As baionetas caladas apontavam em sua direção, como num pacto da morte, numa cena torturante. Os presos comentavam:
- O doutor morreu?
- Não quero saber da vida de seu ninguém, quanto mais de morte. Todo mundo depois que morre é bom. Quem quiser gostar de mim, que goste enquanto estou vivo.
Houve cheia e o Presídio parecia uma Arca de Noé. Os presos gritavam:
- Abram aqui!
- É o fim do mundo! – Um dos guardas gritou:
- Félas das putas! Vão na onda do capelão do catorze pra botar a Bandeira Nacional na linha do trem! Morram, pestes!
Em seu segundo sonho, o trem entrava em um túnel subterrâneo e não mais saía, mergulhando na lama do Coque. Depois, avistava as pessoas entrarem e saírem de um buraco, pelo chão a dentro.
- Será que, no futuro, será assim nas metrópoles?
Ora o trem mergulhava num túnel totalmente escuro (Intervalo). Já se encontrava em plena liberdade num trem, sem nuvem de fumaça, nos corredores com pistas altas e baixas: uma para o trem e bonde, outras para ônibus e carros (Intervalo). Em segundo plano via-se, beirando, rios e o mar de Olinda.
- Luiz! – era o condutor apontando – olha a estação!
Acordou-se, descendo do trem em movimento. Aproveitando o comboio que passava lentamente, saltou do estribo bem próximo ao banco de madeira da plataforma da estação. Lá, encontravam-se alguns religiosos discutindo sobre religião. Luiz Carlos, como leigo no assunto, mas muito curioso, analisava aquela conversa, que sempre terminava em aborrecimentos. Pesava mais ainda para o velho Jeová-barbeiro, seu padrinho. Sua derrota, e tantas perseguições que sofrera, eram devidas às profanações que fizera, sempre com o seu panamá na cabeça e os dedos polegares às alças do suspensório. Quando falava na pessoa do Senhor Jesus Cristo, como um homem inteligente, que aplicava muito bem as palavras de amor e bondade, julgando-o como um ser humano igual aos outros, nascido de relação entre um homem e uma mulher, era um “Deus nos acuda”.
Pensava Luiz, consigo mesmo: “Não é que o meu padrinho tem muita sabedoria?” Mas, na verdade Luiz tinha mesmo era medo de sofrer como o padrinho, que já fora um grande barbeiro e aprendera no Rio de Janeiro a cortar todo o tipo de cabelo: de Jack Dempsey (chamado popularmente pela corruptela de Jaqui Demes) a Cornel Wilde. No Recife, instalou uma barbearia ambulante no Mercado São José. Ali, todos lhe davam a preferência, por ser competente na arte de cortar. Os fregueses mais exigentes preferiam Cornel Wilde ou Dick Farney. Para as prostitutas, penteava com pastinhas na testa (pega rapaz) sobre o corte “a la homem”, como se fosse um cabeleireiro e, com a pose de quem estivesse num grande salão de beleza, penteava as grandes damas do “Café Society”. Sem condições de abrir um salão na capital, resolveu voltar para a sua cidade natal, sendo lá os cortes referenciados uma grande novidade. Até mesmo as mulheres do Chefe da Estação e do Delegado de polícia aderiram à nova moda, deixando de lado suas tranças e cocós, ficando no toilette embelezadas com o seu “a la homem”. Apenas a índia Luzinete permanecia em sua simplicidade, com seus cabelos longos; e, na lembrança de Luiz, apenas ficava a imagem que seus lindos cabelos reproduziam ao esvoaçarem-se ao som do vento, quando da estação a via correr. O velho Jeová agora vivia dos ganhos da lavagem de roupa de dona Zefinha, sua esposa e madrinha de Luiz e da esmola dos ferroviários. Luiz ajudava-o, por vezes, com os trabalhadores nas linhas ferroviária (chamados popularmente de cassacos de linha), na hora do almoço, achando que todas as profissões brasileiras deveriam ter seus direitos igualmente respeitados, o que não acontecia com algumas, quando via alguns manobreiros, guarda-freios... com alguns de seus membros mutilados, mas sem terem sido cobertos pela lei que os deveria amparar, ou mesmo com um de seus sentidos totalmente inutilizados, passando sobre os olhos de todos, permanecendo em suas ocupações, totalmente entregues àquela situação, julgados ainda "aptos" ao serviço.
Seu padrinho, para Luiz, só falava coisas interessantes, mas que prejudicavam a ele mesmo. Enfim, seu prejuízo fora tão grande que falecera em um banco de estação, envolvido com seu capote baeta. Dormira e não mais acordara.
*Extraído (em resumo) do livro “O ferroviário – Cap. IV, pp. 39-43. Ed. 1980.
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