MARCAS DE CARATER
Rô Mierling
Ela olha uma rosa muito bonita desenhada numa revista e se entusiasma, mostra para seu marido e diz:
- Amor, olha que desenho lindo. Vou tatuar essa rosa nas minhas costas.
O marido olha o desenho com cara de desprezo e diz:
- Mais não vai mesmo, o povo vai pensar que você não presta.
- Mas por quê? - ela pergunta.
- Porque tatuagem é coisa de gente que não presta, coisa de gente à toa, você não é boi para andar marcada.
Com essa conversa meio que dada por encerrada, a moça pensa na sua mãe que dizia, há anos atrás, que tatuagem não é coisa de moça “direita”.
A moça esquece a conversa. Mas em um sábado de sol, a moça está sentada em um banco na beira do mar, refletindo acerca da vida e vê passar por ela aquele homem grande, de imagem forte, que ela vê continuamente no Facebook.
Ele é grande em tamanho e em ideias, em palavras e em ações públicas, ele propaga a palavra de Deus em seus sermões e diálogos e em suas postagens na internet: ele é pastor evangélico.
- “Mas espera um pouco” – pensa ela – “o grande homem de Deus tem muitas marcas de tinta, marcas que dizem que ele não presta, que ele não é confiável, que talvez seja até um vagabundo”.
Surge a dúvida: como o grande homem de Deus pode então falar de coisas santas se ele tem marcas mundanas espalhadas por todo seu corpo? São marcas de sua identidade, como códigos de barra que vão dizer quem ele é, e pelo que o “povo” diz, essas marcas assinalam sua falta de caráter.
Ela ri, vendo o grande homem passar e balança a cabeça, “quanta ignorância”...
Ela então pensa no que o grande homem deve sentir todo dia quando tenta fazer e propagar o bem, mas suas marcas chegam antes dele no imaginário popular atestando seu caráter, suas ideias, suas teorias de vida e até sua confiabilidade, sem dar a ele ao mesmo a oportunidade de falar ou se defender. Como se defender de pessoas que já sabem quem ele é antes mesmo dele chegar? Pessoas que sequer já o tinham visto antes, mas já atestam que ele não presta pelas marcas de tinta que possui? Poderia ele ser um médico, um deputado, um ladrão ou um pastor.
Mas é obvio que ele não é nada disso, ele é um vagabundo, afinal tem muitas tatuagens.
Ignorância coletiva.
Nesse momento a moça se lembra dos negros, que devido a sua melanina em abundância são vistos pela sociedade como seres que não prestam, pelas marcas em sua pele os negros são vistos como burros e por isso precisam de cotas nas universidades, os negros que devido a marca na sua pele não servem para certos empregos, não podem ser tratados como iguais e em muitas ocasiões são mesmo comparados com bichos, tudo pela tinta, melanina em sua pele.
Afinal, de longe se pode ver o caráter de um negro ou de um tatuado, caráter que fica estampado na sua pele atestando sua não confiabilidade: culpa da maldita tinta.
“Quanta ignorância”...
A que ponto nós chegamos, seres ditos civilizados, evoluídos, “homens de bem”, julgando alguém pelas marcas em sua pele, de longe sabemos se a pessoa é ou não “boa gente”, afinal uma imagem vale mais que mil palavras.
- “Pobre grande homem” - pensa a moça – “nunca vai se livrar do estigma de suas marcas, que chegam antes dele dizendo quem ele é, lutará ele a vida toda tentando mostrar que seu interior tem mais valor que suas marcas de tinta, quem sabe até consiga com uma ou outra pessoa, mas a massa humana que o vê de longe talvez nunca dê a ele tempo de se aproximar, de falar, rotulando-o por suas marcas que não podem ser apagadas e que são tão grandes quanto o grande homem que ele é.
A moca então se decide, sai da praia e vai ao estúdio do tatuador, mas não escolhe mais a rosa, não, ela muda de ideia e escolha uma faixa ondulada com laços nas pontas, uma faixa grande que manda tatuar nas suas costas, de ombro a ombro em letras vermelhas, para que se veja ao longe. Que se dane seu marido ou a ignorância coletiva.
E dentro da faixa a moça manda escrever a seguinte frase: “confiem em mim, eu sou do bem”, pensado que quem sabe assim, quando ela virar as costas para o mundo, todos possam saber, já de bem longe, pela simples frase nas suas costas, que ela tem caráter, muito caráter.