Mundo estranho

Certa vez uma mulher de nome Inaiá escreveu o seguinte: o engano nem sempre resulta em fracasso. É possível que Inaiá possuísse os próprios conceitos.

-Pois que narre logo como de um engano pode nascer uma felicidade.

Os olhos de Inaiá brilharam de contentamento pelo nosso interesse. Era uma mulher admirável, exuberante, rica e sensual. É de pasmar que fosse além da beleza alcançando a erudição. Preconceito fácil nesse mundo cruelmente estranho.

Como o dia deitava seus últimos raios de sol seu perfil diante de nós ficava ainda mais belo. É necessário que bebamos um pouco de anis, disse. Assim fizeram. Após o anis principiou a narrativa: havia um homem e duas mulheres. Os três cometeram um estranho delito. Miguel, Julia e Marcela aspiravam uma vida intelectual. Miguel desejava ardentemente ser médico, doutor em Clinica Geral. Queria estudar a qualquer custo. Queria ser médico para salvar vidas. Julia por sua vez aspirava a cadeira de enfermagem, para salvar vidas. Marcela se inclinava para o direito que é o objeto das leis e dos fóruns.

Noite e dia estudaram sem parar e por sete vezes em sete anos receberam cada qual a nota mínima. Não se tratava de querer apenas ser alguém, mas desejo da alma. Financeiramente andavam bem sendo filhos queridos de ricos comerciantes. Tomaram os três uma decisão inédita.

Ninguém dava nada para Elisângela. Feia e coberta de espinhas sempre tirava nota máxima em todas as provas do cursinho. O nome dela era o primeiro da lista em todos os concursos e vestibulares que se metia de norte a sul do país. Tudo pelo prazer da nota máxima. Uma mulher capaz de responder dez perguntas em direções diferentes em poucos segundos. A miserável Elisângela não conseguia cursar nenhuma faculdade devido ao aperto financeiro. Vivia sempre na lona. Desistiu de muitos cursos. Voltava para o trabalho para ajudar a mãe entrevada. Coitada da Elisângela.

Na saída do trabalho encontrou Miguel, Júlia e Marcela no barzinho. Conhecidos dos velhos tempos.

Acentuava Inaiá os “velhos tempos” com movimentos tão agradáveis que quase ficávamos suspensos no ar. Continuou.

No barzinho chegaram a conclusão de que para alcançar o intento precisariam de uma substituição na hora da prova. Os cinco anos posteriores de estudos seriam de avaliação pelos professores. Se fossem ruins... Jamais alcançariam o segundo semestre. Do contrário os mestres seriam tão parvos, mas tão parvos; a ponto da cegueira; no tocante a capacidade de cada um deles.

Sem poder explicar bem como alguém com espinhas no rosto, seios fartos e vestindo saia curta, pode substituir um homem de nome Miguel num concurso; Elisângela por dinheiro; apresenta para Miguel um resultado extraordinário. Miguel foi assim aprovado em medicina. Com Júlia e Marcela não foi diferente. Elisângela ganhou um carro e visitas médicas de Miguel com a enfermeira Júlia durante os cinco anos de curso. Logo após sua mãe veio a falecer de apoplexia.

Foram alunos destacados e todos se formaram com louvor com exceção de Elisângela que trabalha até hoje numa casa de família em regime semi-aberto. Formados salvaram muitas vidas durante anos trabalhando todos em seus respectivos empregos. Portanto de um engano nasceu uma felicidade.

Estávamos boquiabertos.

Revelou Inaiá que os colegas brilhantes do curso só com grande esforço se tornaram péssimos profissionais. Um deles receitou para aneurisma pulmonar agudo alguns dias de descanso e repouso para o pobre Capelão. Este sem maior atenção atingiu com rapidez o êxito letal por descuido. Isto confortava Elisângela com sua vida de doméstica porque era brilhante e apenas não conseguia praticar.

O chá de anis estava quente e nos obrigou a tirar o paletó. Abrir um pouco as cortinas das janelas para continuar ouvindo as palavras instantâneas, brilhantes e vistosas de Inaiá.

Tudo ia bem até que um aluno aplicado descobriu o ocorrido. Confissão sem maldade da própria Elisângela. Confessou o único teatro da sua vida nesse fato.

- Qual fato?

- Passar por cérebro de Miguel, Júlia e Marcela no concurso.

Para o aluno certinho aquilo era uma bomba. Reuniu toda a inteligência para criar um escândalo infernal. Arruinou três vidas com uma única inveja. Logo ele que buscava a própria cadeira vaga da razão no lugar da alma que não pode ser de todos! Como fossem bons profissionais passaram a responder processos kafkanianos com gente entrando e saindo das suas residências. É de recear que estudar para todos é questão de ponto de vista. O dinheiro do carro e as debêntures afirmavam aquilo que a filosofia garante: só há esperança na humanidade quando alguém pode fazer facilmente aquilo que para nós é complexo. Assim evoluímos. Há nessa solidariedade final alguma corrupção? Se haviam salvado vidas e livrado inocentes da cadeia! Se os cinco anos de estudos provaram os pendores dos três pelo rigor da avaliação. Por cinco anos foram os três mais destacados alunos de toda universidade. Haviam comprado o bilhete da entrada, somente. Como os mais brilhantes jogadores de cassino, os que ganham “sempre” são expulsos, eles também foram expulsos. E nunca mais puderam trabalhar cada qual no seu setor.

Com o passar do tempo alguns parentes do aluno brilhante, mas incompetente, foram até o mar num verão de matar passarinho e começaram a se afogar... Estava na praia o ex-médico, a ex-enfermeira e a ex-advogada. (Elisângela estava presa por falsidade ideológica). O aluno brilhante e inábil começou a gritar e nada fazia além de berrar como um bezerro alucinado diante do mar. Miguel assim como os Condes são Condes porque se vestem de Condes, foi até lá dentro trazendo de volta os afogados bem asfixiados. Todos os parentes do inábil aluno brilhante estavam a salvo graças à intervenção dos desgraçados profissionais. Procederam como nos ensinamentos. Massagem cardíaca, expulsão da água retida nos pulmões além de todas as lições prescritas para o caso. Com auxílio da ex-enfermeira tudo ficou bem. Por Marcela não poderiam dizer que estavam matando o afogado. Ela poderia testemunhar que o brilhante aluno esteve disposto a injetar nos familiares uma dose mortal de insulina, sem que nenhum deles possuísse, além de água salgada nos pulmões; qualquer outro vestígio de doença. Os três praticaram a profissão sem licença das autoridades e salvaram vidas.

Com certeza um engano pode ser uma felicidade, arrematou Inaiá.*

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TR

*(Qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência!)