Múltiplas Máscaras

Há uma voz do lado de fora, dizendo ser eu, sendo como eu seria, cuidando que o que eu seja para os outros como aquela voz quer que as coisas sejam. E quantos ela ludibria? Eu a amordaço. Eu a acorrento. Mas qual voz não propagará seus sons, apesar de embaraços?

E ouvindo-a caminho, nesse piso incerto, porém inerente à minha incerteza. Pois a minha incerteza é a de que não sei o que acharei se minhas raízes de detetive me dominarem. E sei que a incerteza desse piso, mas parece algo vivo e maior do que eu com uma inteligência superior à minha, talvez com a inteligência que controla a voz do lá fora. A incerteza desse piso é a de não saber como minha incerteza reagirá sob circunstâncias de descoberta. Ela me domina. Esse piso incerto me derruba, me tropeça, me agarra, me abraça e me beija, mas não prevê uma estúpida reação minha. Pois, se talvez previr, então, se deixará ser dominado nesse momento. E por que isso? Breve respondo. Devo contar antes o decorrer dessa história.

Primeira coisa a saber: Esse piso é do lado de dentro.

Segunda coisa a saber: Não sei quando, nem ao certo como foi que fui parar desse lado da parede. Simplesmente dormi e acordei lá. Como num naufrágio esbarrei numa ilha. Sobrevivi à intempérie e acordei onde estou.

De fato tenho sono, e saudades de quando estava dormindo. E até de antes. Tenho saudades de quando vivia aquele sonho antes de sonhá-lo dormindo. Era um sonho não viver desse lado das paredes – o de dentro. Eu vivia aquele sonho como qualquer outro, vivia, e sonhava nele. Sonhava meus sonhos mais simples de vida. Eu sonhava, por exemplo, que estava realizando o sonho de ser eletricista. Hoje como estou aqui dentro, não mais me deito e durmo para sonhar. Apalpo com as mãos os sonhos, e não somente eles. Mas, as lembranças, os desejos, as vontades e os sentimentos. Tudo isso se apresenta a mim, e quando não eu os caço, e os encontro. Ah! Aquela voz do lado de fora, se adormece ainda. Ela e todos os outros que acompanham. Eu, não. Eu nunca paro.

O segredo da história é que quando acordei onde vivo, enquanto mais caminhava mais máscaras e sigilos eu sai encontrando. E aprendi aos poucos a contorná-los e manipulá-los. Pode-se dizer que cheguei aqui como um bobo. Mas depois de encontrar tanta coisa sendo escondida, sendo ignorada, sendo guardada em incognoscível, além de esfriar-me e secar-me, aprendi a lidar melhor com esse conjunto de complexidades que os semânticos chamam de “humano”. Claro que não deixei de ser bobo totalmente, pois não poderia ter-me deixado em tanta hipotermia.

Na verdade muitas coisas desse mundo me quiseram expulsar, mas como sendo coisas que fazem parte do meu corpo não puderam intentar muito contra meus atos. Ignorando-os e voltando as tais máscaras, posso dizer que eram como lençóis. O mais interessante é que estavam ligados como que carnalmente a alma daquele lugar. Algo tão intrínseco que lugares parecidos com aquele teriam algo parecido com aquilo, mas jamais igual.

E como os semânticos chamariam as tais máscaras? Não sou semântico, por isso as chamo de máscaras. Digamos que encontrei nelas o suficiente para merecerem assim serem consideradas. Por exemplo, elas tinham uma aparência, porém tinham outra essência, e ainda por cima serviam como capas para proteger outras coisas. Eram verdadeiras crostas adornadas de flores, mas de terra estrumada. E escondiam criaturas vivas, livres, medonhas e ferozes – verdadeiros demônios.

Haviam momentos que essas criaturas saíam com suas máscaras e iam para além dos limites daquele mundo, iam para onde se controlava a voz falante do meio externo. Encontravam ali um portal, uma ligação para o outro lado. E saíam incontrolavelmente. Assustava-me cada vez que presenciava aquilo. Era inumano.

Mas o tempo passou. Minha inteligência de adaptação me habituou aquele novo mundo. Me acostumei. Conheci muitos demônios escondidos por múltiplas máscaras. Encontrei máscaras que escondiam demônios. Encontrei demônios que escondiam máscaras. Encontrei máscaras que escondiam outras máscaras, que por sua vez escondiam mais alguma coisa. Em tudo me tornei sucinto, não queria tropeçar com minhas escolhas. Tal qual o homem aranha aqueles grandes poderes requeriam grandes responsabilidades.

Terceira coisa a saber: Conhecimento é poder.

Como não podemos esquecer esse mundo é vivo por si só. Mas parece com Gaia. E permitindo suas nobres criaturas do submundo existirem haveria necessidade de equilíbrio. E deve ser por isso que eu encontrava – raramente por sinal – algo que me alegrava. Alguma sensação, por exemplo, como o prazer. O problema é que esse equilíbrio não ligado à quantidade é tão intrínseco que a cada gota que eu bebia desse prazer, milhões dos demônios entravam por minhas gargantas, invadiam minhas vísceras, destruindo meus linfócitos, arraigando feridas, destruindo minhas células brancas, e cicatrizando todo o dano, servindo como um sangue falso, se tornavam parte de mim. Eu bebia do prazer, e sentia prazer por bebê-lo.

E assim foi por muito tempo. Fui o Darwin desse mundo. Pesquisei novas espécies de vida. Anotei e estudei. E a cada observação revolucionária minha percepção se aguçava, e me enlanguescia com uma vontade cega de me tornar um deus para aquele mundo – um rei.

Quem mais podia dominá-lo? Eu não apalpava-o? Não tinha seus segredos nas mãos? Não achava que tinha conhecimento suficiente dele para tal? Então juntei todas as máscaras que pude, subi em um cavalo, e cavalguei até encontrar meu trono.

Eu pensava: “Meu trono está erguido e espera por mim”. Somente não entendia o como podia haver um trono erguido para mim naquele lugar. Na verdade quem pensaria naquilo, quando envolvido às cegas de tanta altivez e presunção? Então cheguei numa terra diferente. Uma terra cega, onde nada eu via, onde nada que eu apalpasse reconhecia pelo tato. Mas percebi que minha boca ali, tinha se entrosado com a voz do outro mundo que parcamente ainda ouvia-se aos ecos. Quando dominei-a foi quando pensei que era aos poucos um deus verdadeiro. Já pensava em um nome: Deus-demim. Perfeito, não? Que mentalidade imatura. Nenhum sentido meu me encontrava ali, além do meu sexto sentido - a Propriocepção.

O meu sexto sentido me dizia que ali havia uma ponte para um mundo maior e mais perigoso. Dizia que eu podia enlouquecer apenas na passagem daquela ponte. Que não somente os sentidos seriam perdidos ali, mas as palavras e as definições. A esperança era pisada por quem lá vivia – era uma obrigação.

Ao saber daquilo me desanimei. Me envolvi do tédio. Eu não poderia mais ser o deus daquele mundo, dominando a tudo que quisesse. Queria desistir daquela solidão, daquele aperreio, daquela vida. Mas quando eu tinha acordado naquele lugar tinha se tornado minha natureza viver daquela forma. Aceitei os riscos. Era minha natureza! Abri mão da minha coroa imaginária. Abri mão do sonho de conhecer a tudo. Então cheguei ao novo mundo que não definia mundo como mundo, que não expressava o significado de mundo, pois nesse mundo não havia mais mundo de significados óbvios. Nesse mundo eu não mais estava num mundo. Estava lá, simplesmente lá. Aumentavam o número de coisas. Umas eu entendia, outras desentendia. Viver para além da compreensão, foi o fato real daquela existência. E isso explica por que sou tão estranho para os outros, e também porque comecei a narrativa no presente e continuei no passado. As inúmeras máscaras passaram a me servir de aperitivo. E como dominei a voz, passei a viver em dois mundos. Esperavam que a reposta daquela pergunta seria de forma mais óbvia não é? Gargalhadas!

Leandro Santtos
Enviado por Leandro Santtos em 04/04/2014
Código do texto: T4755993
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