Ai, Translumbrei!
Senso de humor é o sentimento que faz voce rir daquilo que o deixaria louco de raiva se acontecesse a você.
Barão de Itararé
Barão de Itararé
Era parte do currículo, não havia como escapar. Portanto, lá fui eu e meus dois pés esquerdos para a aula de dança moderna. Pelas paredes, Liza Minneli e outros famosos do universo coreográfico sorriam em fotos ao lado do professor, ex-dançarino cuja promissora carreira acabava de modo obscuro numa faculdade de teatro. O corpo esbelto dos retratos, forçado à inatividade por questões de saúde, avolumou-se em rancor, que ele destilava sobre os pobres alunos sem talento.
Felizmente, apesar de completamente desajeitada, eu ainda possuía algum ritmo, uma razoável memória para as coreografias, elasticidade e certo ar de concentração, que me poupavam de suas críticas mais ferrenhas. Acho que ele me perdoava pela pretensa “boa intenção”. Mas as pobres senhorinhas de nossa turma que estavam na faculdade apenas pelo tão sonhado diplominha de curso superior penavam na sua mão. Era comum alguma delas sair da sala chorando.
Foram aulas torturantes, mas de todas as situações, de todos os momentos hilários ou constrangedores vividos lá, o mais curioso, o mais memorável foi o da pirueta. E este nem foi protagonizado pelo mestre que, depois de explicar o movimento, passou analisando os alunos um por um. Em minha primeira tentativa, consegui dar uma quase meia volta com alguma elegância sobre meu próprio eixo, antes de tombar para um dos lados e concluir o movimento, curvada e cambaleante como um bêbado. Mais duas tentativas, espetáculos igualmente desanimadores, e o professor desistiu de mim e seguiu para o próximo, um rapazinho da turma, lindo, musculatura bem trabalhada e muito mais feminino do que eu, mesmo em meus momentos mais femininos. E, que fique registrado: eu, às vezes, me esforço muito. Pois ele deu duas voltas perfeitas com os braços levantados, e voltou à posição inicial, baixando-os delicadamente sobre a barra, sob os aplausos de todos nós. Então, com ares de primeira bailarina, suspirou:
- Ai! Translumbrei!
Juro. Um pouco menos de controle e eu o teria feito voar pela janela. Na TPM então, não haveria tribunal, no mundo, que me condenasse. Homofobia!? Não! Mas, precisava humilhar?
Texto publicado no jornal Alô Brasília de 04/04/2014, reeditada do texto homônimo publicado em 28/03/2008.