Do gentio da terra
Valéria é o nome que emerge das páginas de um livro com mais de três séculos de existência. Apenas Valéria, porque pessoas como ela não tinham direito a sobrenome. É provável que tenha nascido pouco tempo depois de erguerem o pelourinho na região, de maneira que, em caso de condenação, já tinha onde ser amarrada e chicoteada. Fazia-se um pelourinho para que o povoado pudesse se transformar em vila, mas já haviam se passado mais de duas décadas sem que isso tivesse acontecido. Crescida, Valéria já estava em condições de oferecer amor – talvez a algum semelhante seu, de forma consentida, ou a seu próprio dono, sem prazer algum, ou a algum homem branco qualquer que a cobiçasse.
Desses relacionamentos, eventualmente, nascia uma criança, o que exigia um batismo. Valéria era católica como todos aqueles que vieram aprisionados do sertão. Mas de uma classe de católicos que merecia um livro de batismos à parte, para não se confundir com a outra parte da população, branca e livre. Eram os administrados, eufemismo para os escravos de origem indígena, também chamados “do gentio da terra”. Dizem os colonizadores que os índios carijós – como Valéria – eram dóceis, trabalhadores e bem intencionados. Com esse espírito, Valéria foi à igreja batizar uma filha, tida com um pai que não era o seu legítimo esposo e por isso não mereceu ser mencionado no registro. Certamente por esperança, e não por ironia, chamou a filha de Ventura. Tudo isso ocorreu antes que o Matheus Leme instaurasse a justiça e o povoado se transformasse na vila que hoje é a cidade de Curitiba.
Ventura cresceu, seu dono morreu, foi dada em herança, teve uma filha com um capitão e outros com homens que a História escondeu. Todos esses filhos nasceram como administrados – alguns conseguiram, mais tarde, ascender à condição de bastardos livres. Muitas gerações depois, um descendente descobre essas antigas histórias e, por conta delas, se sente um pouco mais curitibano no aniversário da cidade.