Uma criança, cega de nascença,
só sabe de sua cegueira se alguém lhe conta.

(Stephen KIng)



SONHOS PUERIS
 
Lembro-me da Bebeth como se fosse hoje. Uma menina como as outras, cerca de oito anos, cabelos pretos, branquinha e já trazia no olhar um quê de melancolia.
Morava com a mãe que trabalhava o dia todo e por isso, desde cedo aprendera a conviver com a solidão.
Frequentava a escola pela manhã e durante à tarde ficava em casa estudando ou brincando com os amigos no prédio.
Vez por outra ia pra casa de uma vizinha, amiga de sua mãe há muitos anos, que tinha uma prole de cinco filhos. Em muitas ocasiões, a casa estava vazia e Bebeth adorava ficar em companhia da empregada Madalena, uma pessoa simples, analfabeta, que gostava muito da companhia da menina.
Naquelas tardes, Bebeth passava horas na cozinha grande enquanto Madalena cuidava dos afazeres domésticos. Limpava,cozinhava, passava a roupa. A menina acompanhava tudo fascinada. Embalada pela melodia que tocava no velho rádio ligado sobre a pia, sonhava.
Sentia o aroma gostoso da comida (Madalena cozinhava muito bem) e seu estômago dava cambalhotas; aquele cheirinho de limpeza, o chão sempre alvo, as paredes e a pia branquinha, tudo arrumado encantava os olhos da menina.
Em sua imaginação pueril, sonhava um dia se casar, ter sua casa e cuidar exatamente como Madalena fazia. Vez por outra pedia pra passar um pano no chão ou então ajudar com os temperos e Madalena sorria.
Quando Bebeth comentava sobre seus sonhos retrucava: - que nada menina; você vai crescer, estudar, se formar e trabalhar. Vai ganhar o mundo.
Bebeth insistia: - não Madá; eu quero ter minha casa e fazer tudo como você faz.
Em uma época onde as crianças ainda brincavam de roda, pega-pega, baleado, garrafão; os brinquedos eram bonecas, bolas, peões, bicicletas, aquele era o ideal de sonho de Bebeth.
Certa feita, por ocasião de seu aniversário, ganhou de sua mãe um radinho de pilhas vermelho. Depois de sua boneca Beijoca, foi o melhor presente que já recebera até então. Dormia com o radinho sob o travesseiro, pois adorava música; aliás, desde muito cedo descobrira a música e as letras.
O tempo passou, Bebeth cresceu, casou e anos depois Madalena a encontrou trabalhando em um banco. Conversaram e constataram que muito, daqueles sonhos, se perdeu. As expectativas eram outras, os desejos, as necessidades e sonhos também.
Mas na memória de ambas ainda repousavam as lembranças daquelas tardes simplórias, tranquilas, onde a amizade entre uma mulher simples e uma criança inocente afagava dois corações puros.
Lamentavelmente percebemos como a maturidade, a demanda social, a vida adulta corrompem nossos sonhos.
 

 
BETH LUCCHESI
Enviado por BETH LUCCHESI em 30/03/2014
Código do texto: T4749554
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