Bagagem de Viagem
Ela fora visitar a prima que se aniversariava. Ao chegar, outras senhoras com seus cinquenta e sessenta anos já se encontravam reunidas com seus crochês e tricôs – fofocas do cotidiano de décadas a fora. A prima, a aniversariante era o viés de ligação entre as quase desconhecidas que compunham a assembleia de aposentadas.
A colcha de memórias já havia sido iniciada assim que a primeira chegara. E aí era trabalho coletivo. Cada uma colaborava com um ponto e um conto. Era colcha de saudades e pecados. Uma lembrava-se disto, a outra daquilo e assim, dois para dentro e um para fora, a conversa se construía.
Entre tantas falas e meneios uma afirmação que calara a todas para prestarem atenção no bordado que sairia:
-ah, estou me lembrando de você quando comecei a trabalhar no hospital. Acho que eu estava começando e você estava deixando o emprego.
A que fora reconhecida se ruborizou; estava ali naquela reunião com seus 60 anos e, no transcorrer dos anos, após ter deixado o emprego, tornara-se religiosa, Irmã de Caridade – sua expiação.
Ao ser reconhecida sentiu-se na obrigação de contar a sua história sem que ninguém lhe pedisse confissão – impulso de consciência pesada e culpa passada. E começou o relatório dos motivos de suas escolhas.
Ela era funcionária do tal hospital e ao ver que o telhado estava em reparo se sentiu atraída pela escada que dava acesso às alturas. Não pensou duas vezes. Subiu degrau por degrau. E lá encima estava o operário que fazia consertos. E no impulso de seus hormônios o trabalhador aproveitou a situação e lhe agarrou e lhe deu beijos e lhe bulinou como pode e fez tudo ou quase tudo que lhe convinha fazer.
Foi quando alguém chegou e flagrou a cena. Para Barbacena dos meados dos anos 70 aquilo era demais. Virou notícia e escândalo. Todos passaram a comentar o fato.
Enquanto o trabalhador beijoqueiro se gabava por mais uma conquista, a pobre moça se envergonhou do assédio. Para não ter que ouvir os comentários maledicentes sobre sua pessoa pedira conta. Deixou de ser funcionária do hospital e buscou o caminho da remissão: se tornaria virgem para sempre. Buscou o caminho da religião para redimir-se de sua vergonha.
Naquele tempo era assim: dar um beijo ou recebê-lo de um rapaz e se alguém visse era “cair na boca do povo”. Ficava-se estigmatizada como “mulher-sem-vergonha”.
A solução era entregar-se ao casamento ou à vida monástica.
E ali estava aquela senhora, Irmã de Caridade, achando que ainda devia dar satisfação para suas amigas só porque uma quase desconhecida lhe reconhecera. Mas sua consciência lhe sugava o sono e a tranquilidade durante décadas bem como poetizara Augusto dos Anjos:
“A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!”
Temos sempre conosco uma mala de viagem. Carregamos conosco em nossa bagagem a cultura do tempo que nós vivemos. Se fosse hoje, ela não estaria carregando esta culpa. O beijoqueiro, sim, estaria respondendo por assédio sexual à justiça.
Fica a pergunta: O que você leva em teus apetrechos de viagens? Quais são os pesos que você carrega em tua bagagem ou quais são os trajes que você talhou para a festa que a vida lhe preparou?
Leonardo Lisbôa
Barbacena, 28/03/2014.