Tu, quando orares

Chegou em casa e se atirou na cama. Ligou a televisão e começou a assistir um daqueles seriados americanos. Lembrou-se que ainda tinha cerveja na geladeira e foi pegar uma latinha. Era assim que descansava de mais um dia de trabalho. Passava a noite trocando os canais da TV por assinatura, dando risada e, eventualmente, debochando daquilo que assistia. E foi enquanto mudava de canal que teve a impressão de escutar um barulho estranho.

Diminuiu o volume, apurou o ouvido e escutou de novo. Alguém falando, murmurando, algo assim. Aparentemente, vinha do quarto ao lado do seu, onde outro homem havia chegado do trabalho. Achou engraçado que ele estivesse falando sozinho – não se lembrou que fazia exatamente o mesmo diante da televisão. Tentou identificar aquilo que o outro dizia. E ficou admirado quando percebeu que se tratava de algum tipo de oração.

Arrependeu-se de ter ouvido, de ter violado um momento de intimidade. Que engraçado, nem imaginava que seu vizinho fosse religioso. Teria voltado para a televisão naquela hora, se as palavras da oração não tivessem lhe chamado a atenção. O vizinho dizia que já não sabia mais o que fazer, que parecia que todos estavam contra ele, que a vida naquela cidade estava muito difícil – e logo em seguida ouviu um choro convulsivo.

O homem então se levantou e foi para outra parte da casa, onde não pudesse mais ouvir. Também não podia imaginar que o seu vizinho, um homem tão simpático e bem disposto, forte, atlético, pudesse sofrer com aquela intensidade. Pensou na própria vida e concluiu que também tinha motivos para chorar daquela maneira. Apenas não teria um Deus a quem orar, pois sempre achou a questão complicada demais para tomar algum partido.

Resolveu escrever um bilhete. Coisa simples, apenas para dizer que sem querer havia ouvido a oração e que, no que pudesse, podia contar com ele. Caminhou mansamente e o deixou embaixo da porta do vizinho. Voltou então ao seu quarto e pensou em desligar a televisão.

milkau
Enviado por milkau em 28/03/2014
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