A SOBRA DO LIXO

Era tarde da noite. Já tinha chorado todas as lágrimas. Ali, acuado, enquanto outros sentados do outro lado jogavam cartas. Sentia frio, sentia um frio na espinha que não o deixava ter iniciativa nenhuma. Parado, no mesmo lugar, e uma última lágrima tardia rolava do canto do olho esquerdo, fazia curva no nariz e descia até a boca. Dormia. Os olhos fechados a ver outras imagens que não eram aquelas de instantes.

Oito horas da manhã e nada de ônibus. Acordara tarde e tardiamente tudo se procedeu: saiu de casa sem amarrar os sapatos, o cabelo por pentear e a carteira ficou na outra calça vestida no dia passado. Passada a camisa às pressas se foi sem olhar para trás, apenas os gritos de alguns conhecidos - já vai tarde, né Pedro! - E se ia sem responder. Na parada e nada, nada de ônibus, nada da hora parar e um estranho nervosismo. Um homem bonito, pele queimado do sol, cabelo rebaixado e rosto suave. Vinte anos de idade e setenta quilos divididos em altura média. Há três anos viera para a cidade morar na companhia da irmã para trabalhar e ajudar nas despesas de casa, e todos os dias ia de casa em cada oferecer produtos caseiros de melhorias à saúde.

Tossiu. Lambeu a lágrima. Sentiu que não era suficiente. Tentou balbuciar qualquer coisa e essa coisa passou a ser motivo de riso para os marmanjos que o disputava no jogo de cartas. Baralho traçado, cada um com o seu jogo e no momento em que as damas e os valetes se posicionavam, o rei destino abria a boca e ferrava no sono. Somente um bom trunfo para mudar as regras do jogo. A carta faltante repousava e, de longe, apenas restos de memória, restos de consciência, pingos de escuridão no grande corredor que o distanciava da realidade. Água, era o que queria, água, água...

Nada de ônibus e muita chuva inesperada. E o guarda chuva? O jeito mesmo era ficar ali na parada, sem teto, debaixo de uma árvore e esperar o temporal passar. Passou naquele momento o tempo, dez e meia e ali todo molhado. Resolveu voltar para casa. A manhã parecia perdida mesmo. Voltou o mais depressa que pode, pisando nas poças de água, sorrindo para a solidão da rua deserta depois da chuva. Entrou na rua estreita de sua casa, subiu alguns degraus e chegando em casa, a estranheza da porta encostada. Abriu. Entrou junto com a luz e no meio da escuridão o choque, logo ali, no meio da sala. Sua irmã de faca na mão a pedir socorro. Um corpo. A faca passada para o Pedro, o corpo pedrado jogado no chão tentando entender. Abraça o corpo menor que o seu estirado, agonizando, esfaqueado e a irmã a sair correndo atrás de ajuda.

Ele, ali, e a ajuda que não chegava, apenas um rato vindo da privada, fuçando a ponta do nariz e beijando-lhe a boca. Risos do outro lado. Jogo empatado. O pedido insistente de água e um grandalhão tatuado que se levanta do canto que está, abre a braguilha e despeja sobre o Pedro uma enxurrada de urina. Olhos, boca, ouvidos e muito riso de aprovação dos outros - Toma sua água antes de tomar no c...

Quem chegava via a cena do crime. Um corpo no chão, outro corpo sobre o corpo de faca na mão e gritos de desespero da irmã - Foi ele, foi, ele, ele, assassino, assassino - E todos a favor da culpa da dor. Justiça com as próprias mãos, a sentença condenatória antes do inquérito, do julgamento, sem direito de resposta.

Sem direito a resposta é conduzido ao presídio como infanticida monstro, ter tido a ira ruim de matar o próprio sobrinho, indefeso, pouco mais de seis anos de idade, um anjo: cabelos cheios, pele dourada, lábios rosados e muito sorriso, um mimo de criança, mas quem chegava via a cena do corpo nu, amarrado nas grades da cela com as tiras feitas da roupa vestida antes. Sangrado. A cabeça arrancada. A genitália arrancada posta na boca. Uma enxurrada de sangue. Gritos de outras celas. Alvoroço - enfia a estaca no rabo - Risos! Alerta. Todos de camisa tampando o rosto. O escuro fica claro. Preso a grade o preço da sobra do lixo humano.

Nesse momento? A irmã relaxava sossegada, a cabeça sobre o travesseiro morno do irmão Pedra transformado em lama. Da cama ligava a teve na hora do noticiário: Nessa noite a vida do menor morto pelo próprio tio fora vingada, Pedro foi encontrado morto na cela, decapitado, severamente estuprado, os órgãos sexuais arrancados. Na prisão um grito só: fez errado, tá ferrado; bandido bom é bandido... Em lágrimas , a irmã não consegue ver mais nada.