AULA DE HISTÓRIA

Éramos cinquenta pré-adolescentes, recém aprovados, no exame de admissão ao ginásio do Colégio Independência, no bairro da Estância, zona Oeste do Recife.

Já havia passado o susto dos primeiros dias, onde uma novidade atrás da outra, fazia-nos custar a conciliar o sono, quando finalmente dávamos por concluídas as intermináveis tarefas “de casa”.

Nesse tempo, nas escolas, ainda havia a separação por sexo.

As meninas assistiam às aulas no turno da manhã, enquanto nós, os “quase homens”, no turno da tarde, de segunda à sexta-feira das treze às dezoito horas, dez das onze matérias, vez que as aulas de Educação Física, ministradas pelo Capitão Aguiar, da Polícia Militar de Pernambuco, eram nas quartas-feiras e nos sábados, das seis às dez horas, no campo da Vila Tamandaré, bem próximo ao colégio, e nos dias chuvosos, na quadra coberta do colégio onde estudávamos.

As outras matérias curriculares eram: Português (Professor Azevedo); Latim (Professor Filgueiras); Francês (Professor Besa Barkokebas); Matemática (Professor Francisco do Amaral Militão); Desenho Geométrico (Professor José Bastos); Geografia Geral (Professor Jasson Pacheco); Ciências (Professor Nogueira); Canto Orfeônico (Professor Luciano Costa); Trabalhos Manuais (Professora Cesarina Vieira da Costa); e História do Brasil (Professor Manuel Nery Barbosa).

O Professor Nery, com voz possante e termos simples, bem ao nível intelectual dos alunos, conseguia fazer-nos viajar pela noite eterna do passado histórico. O seu poder era tal, que lembro perfeitamente, do dia em que estávamos hipnotizados ouvindo-o discorrer sobre as Capitanias Hereditárias.

Nós já tínhamos visto esse assunto durante o curso primário, mas agora o enfoque era diferente, havia magia nas palavras do Professor quando tirou a minha dúvida, quanto à frase do autor Aroldo de Azevedo quando diz, que as únicas capitanias que prosperaram foram as de Pernambuco e São Vicente e que as demais, apesar das feitorias “não deram frutos”.

Ora, nessa época eu vivia trepando em árvores, a maioria frutíferas, e elas, as árvores, davam frutos. Será que as árvores plantadas pelos colonizadores não eram fruteiras? Porque Dom Pero Vaz de Caminha, quando escreveu a carta a El Rey Dom Manuel I, disse textualmente – “em se plantando tudo dá” – como podia não ter dado frutos?

E o Professor Nery pôs fim à dúvida, que não era só minha, e movido pelo entusiasmo que se apodera do verdadeiro mestre, quando sente o interesse da turma, discorreu sobre as capitanias que prosperaram.

Falou-nos do donatário da capitania de Pernambuco, Dom Duarte Coelho Pereira e da sua esposa, dona Brites de Albuquerque, que movida pelo zelo religioso, expulsou de casa ao seu irmão Jerônimo de Albuquerque, por sua vida “desregrada” com os gentios.

Jerônimo, consciente de sua condição de macho reprodutor e imbuído do firme propósito de povoar a nova terra, teve vinte e quatro filhos, sendo onze com dona Filipa de Melo, uma aristocrata europeia, oito com a índia Tabira, posteriormente batizada com o nome cristão de Maria do Espírito Santo Arco Verde e mais cinco com outras índias e europeias cujos nomes a história não registrou, mas os filhos foram legitimados pelo zeloso pai.

Sobre a capitania de São Vicente, ressaltou a importância de João Ramalho, no papel de mediador entre o Cacique Tibiriçá e o invasor português Martin Afonso de Souza.

João Ramalho foi encontrado na praia, depois de um naufrágio, por Mbicy, filha de Tibiriçá. Não tenho a mínima ideia de como se pronuncia o nome dela, mas deve ser algo parecido com Burtira ou Bartira, como nós a chamamos até hoje, apesar dela ter sido batizada (para que satanás não levasse a sua alma selvagem para as profundezas dos infernos) e recebido o nome cristão de Isabel Dias.

João Ramalho era chamado pelos índios de Piratininga, que em tradução livre, significa peixe secando, talvez por ter sido encontrado semimorto secando ao sol.

Da união natural de João Ramalho com Bartira, que o padre Manuel da Nóbrega transformou em matrimônio, nasceram nove filhos (André, Joana, Margarida, Francisco Victorio, Antonio, Marcos Jordão, Antonia Quaresma, Catarina e João).

João Ramalho fundou a povoação de Santo André da Borda do Campo e ajudou na fundação do colégio Jesuíta no pátio de Piratininga, hoje marco zero da capital do Estado de São Paulo.

Os filhos homens de João Ramalho se especializaram em caçar e vender os índios de tribos inimigas para serem escravos, e a ação destrutiva do cristianismo, praticamente apagou a cultura milenar dos nativos que poderia ter sido disseminada pelos milhares de descendentes do casal Bartira e João Ramalho.

Consta numa carta do padre José de Anchieta, datada de 01 de junho de 1560, que Bartira morreu, numa casa de pau a pique que mandara construir no Pátio do Colégio, exalando odor apodrecido, talvez efeito da sífilis, doença sexualmente transmitida, causada pela bactéria Treponema pallidum, que os portugueses trouxeram e distribuíram farta e indiscriminadamente, nas muitas aldeias para as jovens “selvagens do novo mundo”...

Nossa aula terminava às dezoito horas, mas nesse dia, só notamos que já passava das dezenove horas quando os alunos do período noturno apareceram na porta.

Nenhum de nós havia notado que anoitecera...