O Aprendizado do Fracasso

Por uma dessas felizes coincidências que acontecem na vida, surgiu a oportunidade de fazer um doutorado na Espanha. Desejo guardado de longas datas de viver experiências novas, voltar a me sentir estudante, de pegar as rédeas da minha vida, me virar, tomar minhas próprias decisões sem a proteção da minha família. Às vezes... não temos a sensação que uma bomba caiu nas nossas cabeças? Pois eu experimentei a sensação contrária: a de que caiu um enorme presente na minha. Negociação com a família, com a instituição e a sensação de que tudo estava me conduzindo a seguir o meu destino.

Com a alegria de uma adolescente que vai para a Disney, embarquei rumo ao novo,ao desconhecido. Adrenalina em alta o tempo todo. Dividir um apartamento com duas amigas muito queridas mas muito diferentes de mim e diferentes entre si foi um aprendizado e tanto. Conviver com amigos homens outra experiência fantástica. Ah, como eles são mais práticos e descomplicados!!! Todo dia era um desafio novo. Dentre eles, o maior era driblar a saudade, o banzo que chegava sem bater na porta.

Lá aprendi que não temos o poder de evitar nada, quando tive a notícia do sequestro da minha filha e do meu genro. Tinha acontecido uma semana antes e fui poupada quando tudo ocorreu. Embora sabendo que estava tudo bem, senti a sensação da morte ao meu lado e uma enorme impotência. Sentimento que vem antecedido pela prepotência e culpa. Achamos que, se estamos perto, podemos evitar as coisas ruins que podem acontecer com os nossos. Eu fiquei para morrer diante da minha fragilidade. Lembro que liguei para minha sogra, a pessoa mais próxima de Deus que conheço, pedindo que ela me jurasse que não ia deixar nada de mal acontecer com meus filhos e marido enquanto estivesse longe. Isso me acalmou de uma forma incrível mesmo com o meu racional dizendo que essa promessa talvez não pudesse ser cumprida. Outro aprendizado: muitas vezes a nossa ausência mais ajuda que atrapalha. Tive a sensação que a família se fortaleceu com o acontecido e o fato de estar longe os ajudou a que se unissem ainda mais.

Não esquecerei nunca o dia que o meu marido chegou para me reencontrar. Coração disparado de paixão, pele gelada, alma agitada.... e lá estava eu esperando o meu amor, o homem que felizmente escolhi para dividir a minha vida. Com dois dias, algumas diferenças antigas vieram à tona. Ele, o eterno racional e eu a deslumbrada com tudo. Difícil para ele enxergar através dos meus olhos e mais ainda eu aceitar o que ele insistia em não ver. Como, meu Deus, ele não podia ver o verde das árvores das Ramblas, as mais bonitas do mundo?? Tudo a meus olhos era superlativo. Eu queria contemplar, sentar, ver simplesmente as pessoas indo e vindo e observar. Meus sentidos estavam muito aguçados e os sentimentos muito aflorados. Ele queria andar, queria movimento. Veio a dúvida: será que realmente fomos feitos um para o outro? Entre dúvidas e certezas estamos há 31 anos juntos e cada dia tenho mais certeza que temos que respeitar o jeito do outro ao invés de tentar mudar. Ninguém muda se não quiser. A maturidade me fez enxergar isso muitos anos depois.

Lá tive contato com uma pessoa que desconhecia: eu mesma. Para o bem e para o mal. Tive atitudes egoístas e imaturas que me envergonho. Hoje faria muitas coisas diferentes. Tive também muitos motivos para me orgulhar, matei todos os leões necessários e sobrevivi.

Mas o maior aprendizado ainda estava por vir nos anos seguintes quando tive que escrever a minha tese. Aliás, a lição começou no momento da defesa do trabalho para obtenção do Diploma de Estudos Avançados, etapa obrigatória para seguir o doutorado . Estava certa que tiraria uma ótima nota, tinha me esforçado e …...veio a notícia de que fui uma das poucas a tirar Notable ou bom. Foi aí que tive contato com minha enorme dificuldade de aceitar um fracasso e mais ainda de seguir adiante.

Hoje tenho a certeza que esse fato foi decisivo para a mudança de rumo. Acho que meus amigos percebiam com mais facilidade que eu estava tomando um caminho complicado. Mas meu trauma foi tão grande que a solução que tomei foi simplesmente trocar de tema.

Insisti, mesmo sabendo que não iria dar em nada, me isolei no dia do meu aniversário na Serra de Guaramiranga sob protestos da família, chorei sozinha a morte de um amigo querido , passei dias e dias me arriscando em moto-táxi no calor de 40º em Sobral fazendo entrevistas, investi muitas férias tentando “de novo, de novo e de novo”, mesmo com a sensação de estar perdendo tempo e a quase certeza que não iria dar em nada. E quando alguém me perguntava: “ Quando você vai defender sua tese??” O meu estômago revirava, o meu coração disparava, minha consciência me acusava e eu respondia baixinho : “estou trabalhando nela”.

Até que chegou um belo dia que eu disse : “Chega. Não quero mais brincar disso”. Ah, como foi doloroso admitir que não ia dar, meu Deus!!!!!! Lembro das noites sem dormir, da vergonha de olhar para meus amigos do doutorado e do trabalho, além da minha família. Tinha a impressão que todos estavam apontando o dedo e dizendo: “Você nos decepcionou”. Isso interferiu de uma forma na minha autoestima que me senti diminuindo de tamanho.

Diante da situação, tinha dois caminhos a seguir: o primeiro era continuar na minha ladainha de fracassada, enchendo o saco dos outros, me vitimizando para que as pessoas me perdoassem pelo meu “fracasso”; o outro seria levantar a cabeça e admitir que o “fracasso” não é o fim do mundo e que existe sim ,um lugar ao sol para aqueles que não terminam sua tese. Por questões genéticas, optei pela segunda via, queria voltar a ser feliz, me perdoar , me libertar desse peso terrível. Decisão tomada, fui procurar ajuda. Decisão esta, acertadíssima. Sem minha querida terapeuta, o caminho teria sido muito mais longo e pedregoso. Algumas sessões depois e tive a certeza que toda escolha tem seu preço e que temos que saber o que desejamos de fato para corrermos menos riscos. Parece simples mas não é. Lembro que todo começo de ano jurava que iria concluir minha tese mas, minhas atitudes me levavam ao caminho oposto, numa atitude clara de auto sabotagem. Complicado esse negócio, né?? Como uma pessoa pode se sabotar?? Acreditem, isso é real e eu era uma auto sabotadora, quase uma mulher bomba. De repente tudo parecia muito claro. Então quer dizer que no fundo eu não queria fazer minha tese?? Acho que queria sim, mas sem sacrificar meus fins de semana, sem deixar de trabalhar , sem perder as oportunidades que surgiam, sem deixar de viajar, viajar e viajar. Sentiu o drama da coisa??? A verdade é que não ia chegar nunca ao meu objetivo porque não estava comprometida com o meu suposto desejo.

E assim, enxergando com novas lentes, percebi que o meu doutorado já tinha me dado o que eu buscava: amigos, realização de um sonho, viagens, novos conhecimentos, a oportunidade de ter a certeza que sem minha família eu não sou nada, a certeza que sou uma pessoa capaz de conduzir minha vida e.... muitos e muitos outros ganhos mais.

Como me sinto hoje??? feliz, tranquila. Agora posso dar uma resposta sincera às pessoas que me perguntavam quando ia defender minha tese : “Eu não vou defender minha tese”. “ Ãhhh, mas por que????” “Porque eu não quero”. Simples assim.

Dominiquecmg
Enviado por Dominiquecmg em 27/03/2014
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