UM SANTO NA ENCHENTE DA FAVELA...
 
 
Reporter de jornal em São Paulo fui encarregado de acompanhar  enchente em favela inundada pelo rio Tietê,na marginal,no sentido sul-leste,exatamente onde situava uma favela totalmente tomada pela águas,com a população paupérrima em desespero e calamidade.Isto próximo ao bairro da Casa Verde,zona norte.
Aquilo,na época, não era nenhuma novidade.A natureza costuma repetir suas ações, mesmo que os homens a ignorem. Mesmo que os governos não tomem alguma providência. A natureza nada pergunta aos homens para agir...Temos que agüentar!
As chuvas sempre em São Paulo,naquela época, enchiam o rio –sem piedade e sem avisar. Só anos mais tarde, com ajuda do Japão, o governo estadual,com técnica e boa vontade diminuiu essa calamidade.Limpou o fundo do rio e compactou com cimento as margens.Finalmente! Mas a favela que visitei não mais existe...hoje.
Um fato ficou na memória do repórter,que,descalço, de calça arregaçada e pernas nas águas, chegou até alguns moradores  que pediam ajuda,para colher os dados necessários ao jornal. Repórter é repórter. Só,excepcionalmente repórter,é salva-vidas ou bombeiro.Aquele dia não dava para ser nada disso.Nem para ser herói!
No caso aqui era só um repórter a mais entre outros, a cata de informação para alimentar – não a população local,coitada- mas os leitores,em suas casas  no dia seguinte. A coisa é assim... ninguém vai mudar o mundo.Cumpri meu dever.
Se a Providência divina nada resolve...quem resolveria? Aquele dramático dia de muita água,onde os barracos estavam inundados por águas –sabidamente –imundas.O rio Tietê era e ainda talvez seja o maior esgoto a céu aberto que já vi. Além do perigo da água, a contaminação,pela urina dos ratos, a leptospirose,vem impiedosamente! Isso mata.
Ninguém sozinho salva a pátria. Nem mesmo os próprios favelados,do rio Tietê! Eram  só vitimas.
Olhando o triste espetáculo da vergonha,onde a água domina a miséria e os pobres ...estava com os olhos fixos em um negro velho sentado num lugar ainda seco--em cima de uma pedra—e, ao lado peças enferrujadas e sem valor algum.Tudo levando a crer que era um catador de reciclados- sozinho e sem ninguém...na vida.
Naquela época favela não era esconderijo de malandro ou bandido!! Era tudo diferente.
De repente surgiu um negrinho, uma criança, com uma caneca artesanal –um latinha de tomate- saindo vapor do fundo,presumindo que havia algo quente –e, entregou ao negro velho,que nada falou. Silêncio.
 
A caneca era feita mesmo de uma lata de tomate da marca CICA, com alça feita à mão. Poucos conseguiriam confeccionar com perfeição e arte o que vi.Lembro que a caneca tinha ainda a propaganda da CICA, que dizia,na época : “bons produtos indica”.  Isso tudo,para rimar.Vender o “peixe”.
Nada sei mais dessa empresa.Se existe ou não.
Voltando `a enchente...e à favela:
Era café quente,e do puro.Deu para ver. O vapor subia no rosto do negro velho,naquela manhã.Alguém que não sei mandou esse presente ao catador de ferro-velho...O garoto saiu do nada! Sumiu no meio da água e das casas inundadas...Nada falou.
Solidariedade  existe em meio social que vi! Na favela.Nem tudo estaria perdido.Acho que no fundo todos são iguais...A realidade diz que não!
Ele- antes de tomar o café quente- ainda olhou para mim, com um ar melancólico,cansado e perguntou:
“O senhor está servido?”
Respondi que não!
Estava diante de um santo, em enchente numa favela de São Paulo!
Não restava a menor dúvida,numa manhã de chuvas intensas!
Fui - imediatamente- embora, dizendo Adeus!                                                                        Lembro dos seus cabelos brancos,no meio das águas barrentas.                                                   Negro quando tem cabelos brancos já teve a data de validade vencida,na vida...mas este estava lá.Firme diante da catástrofe!
Eu vi um santo,minimamente gentil. Se santo não era – certamente- era educado!