Romeiros não entram na cidade II
Depois de ler o que li em jornais da ilha do século XIX, começo a perceber a razão de não me ter sentido bem a atravessar a cidade de Ponta Delgada há 27 romarias atrás? Algumas pessoas, olhavam-nos como se fossemos leprosos. Poucas ou nenhumas, nos pediam rezas. Posso estar enganado, mas senti que o rancho sentiu um alívio quando subiu do Paim aos Arrifes. Seriam restos do que abaixo escreverei? Agora já não é bem assim. Aliás, ironia, há quem não percebendo o valor espiritual, perceba o valor material: é bom para o turismo.
2. Proibição dos romeiros entrarem em Ponta Delgada
Saltemos de 1707 para 22 de Abril de 1891. Para o liberal progressista e positivista Francisco Maria Supico, a romaria era um cascalho que fazia ‘bexiga’ no pé do progresso. Uma crendice que justificava ‘(…) que as autoridades policiais [de Ponta Delgada] há muito lhes não permitem a entrada na cidade.’ A questão não era tanto a crendice, era económica, prejudicava a economia em geral, como pretendeu demonstrar: ‘uns poucos de milhares de dias de trabalho se perderam (…).’ Chega lá porque, faz contas: ‘(…) pela Lagoa passaram vinte e três bandos com 1 113 sujeitos em peregrinação (…).‘ E prejudicava a economia do lar: ‘(…) indo (…) bem fornecidos os alforges dos devotos quando talvez a bastantes de suas famílias faltasse a essencial subsistência.’ Inteligente e arguto, percebe mas não aceita a devoção: ‘(…) mal entendida piedade (…) um sentimento devoto menos bem compreendido (…).’ Que são, segundo ele ainda: ‘(...) correrias tão pouco edificantes .’
3. Perdas materiais com as romarias
Três anos depois de Supico, a 11 de Abril de 1894, um jornalista da Povoação descobre as contas das perdas materiais com as romarias. E Supico, que não mudara de opinião, faz coro ‘ao seu colega.’ Não há memória de que o esforço em apresentar contas certas tenha levado o jornalista a um esgotamento cerebral, as contas, de tão evidentes eram simples: ‘(...) passaram 20 ranchos com 889 homens, que trabalhando, podiam a 300 réis diários, nos 8 dias que gastaram em devoção, ganhar 2 136$600 réis para perderem 889$000 réis supondo que cada um gastou 1 000$000 réis nestes oito dias, o que é relativamente pouco. ’
4. Ganhos espirituais com as romarias
No meio deste deserto de elogios, surge a 25 de Março de 1905, um elogio. Vem da Ribeira Grande. Oiçamo-lo: ‘(...) santa peregrinação. Esta tão crente usança vem, desde há muito, notada nos costumes desta ilha.’ E remata: ‘Representa ela uma prova (...) da muita afeição dedicada à Santa Mãe de Deus e nossa.’ Os tempos haviam mudado: ‘Que se riam os espíritos fortes de nossos dias, apodando de retogradação (...) e que desabafem os romeiros constantemente em volta desta crente e piedosa ilha, em tão apropriado tempo, a sua devoção para com a SS. Virgem. ’
Ser-se romeiro já não era para alguns ser um cascalho no sapato do progresso? Seja lá o que for o progresso.
PS: Como cidadão: Que saiba, a igreja nos Açores, só começou a aceitar esta forma de rezar cansando o corpo, muito parcial e condicionalmente, a partir dos anos sessenta do século XX. E tarda em aceitar que toda a Criatura de Deus, homem ou mulher, que queira, possa ser romeiro. Digo, inexplicavelmente, por duas razões. Primeira, a quem é que o rancho reza e em nome de quem reza? A Maria, à Sagrada Família, e à família de cada um, às mães, filhas, namoradas, esposas. Segunda: Quem mais trabalha durante os oito dias em que o rancho está por fora? As mulheres e as Famílias.
Argumentos como a logística e a pouca resistência física das mulheres, são desculpas esfarrapadas, não convencem sequer quem é obrigado a esgrimi-los. Diga-se, em abono da verdade, e deles, sem grande convicção. As romarias de mulheres da paróquia de Santa Clara e de outras paróquias da ilha, algumas já pernoitando fora, e reunindo um número de mulheres aproximado ao número de romeiros homens, falam pelo futuro.
Mário Moura