A Memória

A travessa da Memória, sendo a rua onde moro em Lisboa, o é também devido à origem do nome, o motivo para esta minha crónica. Faz limite com a calçada do Galvão, e a calçada da Memória. No meio fica o largo da Memória onde se deu o atentado ao rei D. José I. O local é hoje sinal de culto na magnífica igreja mandada construir pelo rei em sinal de agradecimento por ter escapado com vida, após ter levado um tiro de bacamarte que o atingiu no braço.

À igreja, foi dado o nome de Igreja do Livramento e de São José, mais tarde baptizada a pelo povo como igreja da Memória, em lembrança do acontecimento. Foi precisamente no local em que esta implantada a igreja que se deu a emboscada, a 3 de Setembro de 1758 contra o rei D. José. Há quem ponha em dúvida se foi atentado ou não, devido a uma série de factores onde predomina Pedro Teixeira, seu cúmplice nas saídas nocturnas. Na verdade, nunca ficou provado que se tratasse de uma tentativa de regicídio, falou-se e pensa-se que os tiros eram para Pedro Teixeira, com o qual o Duque de Aveiro tinha um diferendo, mas também aqui não há certezas. Todavia, isso é tema para os especialistas.

O que quero realçar é o que pode ódio e até a onde vai despotismo do ser humano como o foi neste caso, o chamado processo dos Távoras.

Era na altura, Sebastião José de Carvalho e Melo primeiro-ministro do reino e seu ódio pela alta nobreza era por demais conhecido, daí ser do domínio público que este processo dos Távoras foi uma vingança ignóbil de cariz político, o maior horror da história portuguesa.

- Não me descomponhas!

Estas foram as últimas palavras da orgulhosa marquesa de Távora, D. Leonor, para o carrasco que bruscamente lhe puxava a gola do vestido para por a nu o seu pescoço que iria decepar.

Momentos antes, tinha sido transportada numa cadeirinha, ladeada por dois padres. Ajoelhou-se no primeiro degrau do cadafalso e confessou-se, enquanto se martelava ainda os últimos pregos para segurança dos postes, onde seriam amarrados os condenados.

Depois da absolvição, é recebida por três algozes que lhe mostram um a um os instrumentos de execução. Mostram-lhe o maço de ferro com que iriam martelar arca do peito do marido até o matar. Mostraram-lhe minuciosamente as tesouras e as aspas com quebrariam os ossos das pernas e dos braços do marido e dos filhos. Explicaram como funcionava o garrote, o modo como repuxava e estrangulava. Aí a pobre não aguentou, chorou muito ansiada, e pediu que a matassem depressa.

O carrasco mandou-a sentar num banco, tirou-lhe a capa que dobrou horrendamente devagar. Ela sentou-se. O Algoz vendou-a e ao pôr a mão no lenço que trazia ao pescoço ela disse: «Não me descomponhas». E inclinou a cabeça que foi decepada de um só golpe.

As execuções duraram todo o dia. O duque de Aveiro, talvez o único culpado, foi o que mais sofreu. Enquanto o marquês depois de todo o suplício o carrasco apiedou-se dele, deu-lhe tal pancada no peito que o esmagou pondo fim ao tormento. No caso do duque, após o mesmo tratamento, o carrasco deu-lhe a pancada final, não no peito, mas no ventre, prolongando a agonia. Criados e nobres foram sentenciados e queimados e as cinzas atirados ao mar. Enquanto outros familiares foram enclausurados durante os dezoito anos quanto durou o governo do Marquês de Pombal, acabando muitos, por morrer na prisão.

A cerca de setecentos metros da rua onde moro, ficava o palácio do duque de Aveiro, em Belém, que logo após às execuções foi arrasado e as terras salgadas para que nada ali se criasse.

No local existe uma coluna com os seguintes dizeres:

«Aqui foram arrasadas e salgadas, as casas de José Mascarenhas, exautorado das honras de Duque de Aveiro e outras, condenado por sentença proferida na Suprema Junta de Inconfidência, em 12 de Janeiro de 1759, justiçado como um dos chefes do bárbaro e execrando desacato que, na noite de 3 de Setembro de 1758, se havia cumulado contra a real e sagrada pessoa de El-Rei, Nosso Senhor, Dom José Primeiro.»

O historiador Oliveira Martins descreve o episódio assim:

"D. Leonor de Távora foi degolada e morreu nobremente. Seguiu-se o segundo filho, quase imberbe e louro (...) Estenderam-no sobre a aspa, quebraram-lhe os ossos a maço e garrotaram-no; mas como a corda partiu, o infeliz acabou lentamente. Apareceu então o marquês de Távora, cuja mulher passava por amante do rei. D. José, dizia-se, desonrara-o primeiro: depois matava-o barbaramente. Veio logo o conde de Atouguia e mais três cúmplices (...) Depois de um descanso, prosseguiu a hecatombe. Entrou primeiro em cena o velho marquês de Távora: mostraram-lhe os cadáveres da esposa e dos filhos, deitaram-no na aspa, esmigalhando-lhe os ossos. O desgraçado gemia; mas o horror pavoroso dos gritos veio da execução do duque de Aveiro. O Ferreira, que dera os tiros contra o rei, foi untado de breu, com um saco de pez e enxofre ao pescoço, queimado vivo e assado lentamente (...)"

António Correia.

Lorde
Enviado por Lorde em 25/03/2014
Reeditado em 28/06/2014
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