O Circo do Quati Pitoco

Se eu contasse uma história de personagens das revistas em quadrinhos, certamente não seria novidade para ninguém. Mas, história de Quati Pitoco? Quem é este sujeito, de quem nunca, mas nunquinha, que alguém ouviu falar?

Quati Pitoco foi o garoto mais imprevisível que conheci. Tive a felicidade de estudar no mesmo colégio, na mesma sala e viver as mais incríveis aventuras, apesar de muitas vezes ajudar a pagar caro pelas suas peripécias, dentro e fora da sala de aula.

É claro que este animalesco apodo não tinha nada a ver com ele. Era apenas um apelido, digamos, "intrigante" mas ao mesmo tempo carinhoso, que os amigos da sala lhe deram.

A verdade é que não havia nome que lhe caísse tão bem quanto o de Quati Pitoco. Motivos era o que não lhes faltavam para que o tratassem desse jeito. Não sei se por causa da pele castanho-avermelhada, típica dos quatis da América do Sul, ou se porque tinha o traseiro mosaico, estilo prancha, o que levara seus amigos a premiá-lo com tal alcunha.

Só sei que o apelido caiu-lhe como a uma luva, pois, sabia enganar a turma toda, e com esmero genial, nem mesmo “Dona Gli, a professorinha” lhe escapava às peraltices. Para estudar era um “Deus nos acuda.” Já para fazer travessuras era coisa absurda.

Apesar de não ser muito estudioso, Pitoco sempre se dava muito bem nos exames. Todo início de ano era o mesmo dilema; a lista de material escolar. Como arranjar dinheiro para comprar os livros, os cadernos e as pastas escolares?

De família muito humilde, não só Pitoco, mas todos nós éramos também vítimas de exploradores do trabalho infantil. Mas sempre dávamos a volta por cima. Já estávamos acostumados a sobreviver às mais diversificadas dificuldades que a vida sistematicamente nos impunha.

De um jeito ou de outro o material escolar nossos pais acabavam comprando, porque ficar sem os estudos era coisa inaceitável.

Foi nesta ocasião que Pitoco teve a mais brilhante de todas suas ideias: “Criar o Circo do Quati Pitoco”.

A princípio, eu pensei que fosse apenas mais uma de suas hilárias brincadeira. Uma daquelas viagens fantasiosas de volta ao mundo da infantilidade. Mas quando ele me incumbiu de convidar o pessoal para assistirem ao espetáculo, quase me faltou o ar de tanto rir. Tentei desobedecê-lo, mas, por fim, acabei concordando, presumindo que ele desistisse daquela maluquice por conta própria.

Desistir coisa nenhuma. Lembro-me perfeitamente da cara de deboche de sua avó Dona Carmem, conhecida como Dona Cá, olhando da janela da sala, cerca de uns cinquenta metros de distância, com aquela voz aguda que alcançava com folga o Mi da terceira escala, e um sotaque impressionante, pra lá de nordestino: - Oxente menino, ficou louco, foi? Que arapuca é essa que tu tá inventando?

- Era o Circo do Quati Pitoco. E por incrível que pareça, uma brincadeira idiota que resultou em grana para comprar todo o material escolar e causa de admiração para muita gente grande.

A ideia surgiu quando Seu Manuel, avô de Pitoco, também conhecido como Seu Manu, resolveu levar a garotada para assistir o espetáculo circense, em um circo que estava de passagem numa cidadezinha vizinha. Inspirados no que vimos naquele circo, armamos uma lona em um terreno baldio em frente a um bar, e convidamos o pessoal a apreciar o espetáculo.

Mas, que espetáculo? Ninguém ali entendia bulhufas de arte circense.

Tamanha cara-de-pau eu nunca tinha visto. Como ninguém ali estava disposto a pagar mico, com a pretensão de fazer o papel do palhaço, acabou sobrando para eu e Pitoco apresentar algo de especial aos pagantes, que por sorte eram poucas pessoas.

Até que nos veio a ideia de começar a cantar músicas sertanejas.

Começou-se então a cantoria, e para surpresa de todos, o pessoal que frequentava o bar foi chegando e começou a aplaudir os cantores mirins e a oferecer alguns trocados para que cantássemos suas músicas preferidas.

A partir de então, encontramos o caminho da mina. Ou seja, o caminho do circo e todas as noites o espetáculo estava garantido.

Na informalidade, tudo era feito em nome da diversão e com muita simplicidade.

– Quem quer dar algum dinheiro, fique à vontade! Exclamava Seu Manu, avô de Quati Pitoco. É claro que ele dizia isso zombando, pois ninguém em sã consciência acreditaria numa tolice daquelas.

Sempre entrava uma moeda, uma notinha de um cruzeiro, assim fomos ajuntando dinheiro para o material escolar e ainda sobrava para um refrigerante, um sorvete nas tardes de domingo e muitas outras coisas de maiores necessidades foram compradas com a pequena renda do Circo do Quati Pitoco.

Ora, cantar era uma das mais prazerosas coisas de nossas. vidas.

Fazíamos isso desde muito crianças. Finalmente a ideia do circo começou a me parecer excelente. Pois começava a abrolhar a oportunidade de conseguir alguma coisa na vida.

Hoje eu reflito e me pergunto: - De onde nos veio tão absurda coragem? Haja ousadia! O importante é que tudo funcionou de uma maneira completamente inesperada. Uma simples brincadeira, sem rótulos, sem protocolos, mas com muita diversão e criatividade que deixou muita saudade em todos os corações.

Afinal, para que serve o circo? Só mesmo para divertir e alegrar as pessoas. Os rapazes compareciam somente para paquerar as mocinhas, que, por sua vez faziam o mesmo. Ninguém estava interessado em nossas maluquices. A meninada gostava mesmo de fazer algazarra e comer pipoca.

Para o dono do bar, no entanto, não fazia diferença. Aliás, entre uma cerveja e outra, uma cachacinha aqui outra acolá, seus clientes davam uma passadinha no circo para apreciar a cantoria e contribuir com mais alguns trocados. Nada mal!

– De fato, Custou-me acreditar, dizia Dona Cá. Confesso que no início, me era preferível morrer a passar por aquele vexame. Agora vejo que meu neto é mesmo um garoto arretado e inteligente.

Ela dizia isso porque não sabia metade das travessuras que Pitoco aprontava na escola. E quando ele chegava com o guarda-pó todo respingado de sangue, das bofetadas que lhe davam nas brigas e acertos de contas, os colegas livravam-lhe a cara com algumas desculpas, para que não apanhasse de novo em casa dos pais. Afinal, é para isso mesmo que servem os amigos de verdade.

Hanilton Di Souza
Enviado por Hanilton Di Souza em 23/03/2014
Reeditado em 07/01/2015
Código do texto: T4740214
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