Como se embalada a vácuo
Como se embalada a vácuo
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
EMBORA AINDA SEJA supercedo, o coletivo segue lotado em direção à cidade. A jovem que estou a comer com os olhos não é de quem se desvie a atenção com facilidade, está sentada do lado esquerdo da roleta, naquele banco em que se viaja de costas para o motorista, mas com o inconveniente de duas pessoas de frente uma para a outra, cara a cara, olho no olho. Ao lado dela, em pé, marmanjos de todas as idades seguem, semblantes arregalados, água na boca, aspirando o ar como se fossem cães de caça guiados pelo cheiro de uma presa na iminência de ser abocanhada. Elegante no seu trajar feminino, a deusa usa um desses vestidos colados ao corpo, como pulga no cachorro, como a tromba no elefante. Seu perfil esbelto lembra aquelas mulheres nuas em pêlo e elegantemente estampadas em calendários geralmente encontrados em paredes de borracharias de beira de estrada e oficinas de automóveis.
De tempos em tempos, para excitar os espectadores, puxa discretamente o modelo para baixo, cobrindo as pernas, - ou o que no meio delas se disfarça num triângulo de coloração avermelhada. Com esse gesto, desveste, sem querer, um par de seios fartos e redondinhos, convidando os instintos afogueados da rapaziada a praticarem, ainda que em pensamentos marotos, seus melhores pecados sexuais. Por todo o coletivo, se eleva um rumor alegre, como zumbido de abelhas.
Nesse arruma aqui, se ajeita ali, bom seria se deixasse tudo à mostra, como aqueles legítimos grains de beauté pequenininhos, idênticos, juntinhos um do outro, a semelhança de Castor e Pollux, em pleno colo, quase na embocadura do decote, três dedos abaixo do queixo. Pelo menos, não precisaríamos desejar, a gestos incontidos, que o acaso desse um jeito de acabar, de vez, com aquela agonia e a encantadora se visse, afinal, numa total ausência de ornatos e adereços. Mais que óbvio se ocorresse esse evento, tenho certeza, os senhores respeitosos que dividem comigo esta condução, entrariam em completo estado de letárgico grugrulhar.
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Sou de opinião, que esses “tomara que caia, tomara que suba, tomara que rasgue, ou tomara que se foda”, só servem para isso. Realçar o vulnerável de uma mulher, na sua melhor essência, como a pedra preciosa bruta transformada em joia reluzente, e exibida, a depois, em vitrines de lojas chiques de departamentos. Não sei explicar porque as dondocas insistem em usá-los, vez que, aparentemente, tais peças não são confortáveis, e, em vista disso, precisem, em público, ficar acertando pequenos detalhes, retocando, aqui e acolá, tentando tapar o sol com a peneira, ou seja, o que deveria permanecer dissimilado no seu mais ignoto secreto.
Defendo ferrenhamente a ideia de que o bonito é para ser visto, revisto revisitado, adorado, devorado, amado. Sempre. Seja em que circunstancia for. Jamais para o que é formoso e esmerado, deve ser imposto limites, como não, igualmente, para tudo aquilo que, nas suas regalias e luxúrias mais avassaladoras, agradem os sentidos e os deixem a ver passarinhos onde sequer haja vestígios de gaiolas.
O que quero dizer, nesse papo de cerca Lourenço, é que, em conclusão, são esses mimos, essas dádivas, esses regalos, que as representantes do belo sexo usam que fazem, do nosso dia a dia (ainda que num cata corno onde as pessoas se comprimem, como sardinhas em lata), uma avalanche de inesquecíveis encantos, acompanhados de um comprazimento jamais sonhado. No geral, a coisa funciona como uma espécie de magia única, movimentada por mãos incógnitas, onde entra em cena o inesperado alimentando nosso ego e dando vida plena ao fetiche de nossa alma, como uma parafilia exibicionista, encorajando o coração, por seu turno, a conflagrar mais forte e alvoroçado. São, pois, essas indumentárias curtas, essas vestimentas breves, soltas e ligeiras, que essas poderosas usam, regadas a pouco pano, quase sem nada de pudor, onde, aliás, o despudor aflora depravado, sem toques e retoques, que o nosso eu masculino se revigore e se agigante contribuindo para que o espírito, intranquilo, se eleve a uma satisfação pessoal jamais imaginada.
Nós todos (em vista dessas preciosidades, se nos fosse dada à honra, lógico), evidentemente, preferiríamos um ataque direto, sem intermediários, ou seja, um partir para cima, de primeira, num cinco contra um, à lembrança da realeza endiabrada, vista, assim, só de relance, entronizada, escondida, como uma flor prestimosa, rara, única, de valor inestimável, prestes a ser roubada, de entre as coxas maravilhosamente torneadas pelo Criador. Percebo nessa viagem maravilhosa, que outras figuras, em idade mais avançada que eu, cavalheiros de tempos remotos, se retraem diante desta candura de flor exalando pecado por todos os poros da epiderme. Em vista disto, todavia, se contentam em praticar apenas e tão somente o exercício das vistas através de sisudos óculos de graus... E, nesse aplicar quase de zelo, de pai, se deslumbram, admirando, babando, deixando a saliva vir à porta da boca, numa convulsão inexplicável. Nesse voltar, por certo, alimentam a fogueira do tempo passado. Reacendem, por breves segundos, a lamparina daqueles idos saudosos que lhes escorreram por entre os vãos dos dedos, escapando, incontinente na voragem estapafúrdica do nunca mais.
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De repente deixo de lado meus pensamentos e volto a me concentrar na radiosa. E faço isso no exato momento em que ela dá uma última ajeitada na sua performance e se levanta, para tristeza geral da massa de aparvalhados comprimida à sua admiração. O que eu mais temia, por azar, acontecerá. O fim da linha para ela. A venturosa vai deixar um punhado de almas em frangalhos. Percebo que estamos todos em alarmada indignação. Num gesto suave, o colírio dos nossos olhos pede licença erguendo o braço e puxando a cordinha do sinal de pare. Caminha solene, em direção à porta de desembarque para deixar definitivamente o ônibus, agitando, um pouco, o seu apêndice caudal em trejeitos estudados. A turma se amontoa, uns sobre os outros, os pensamentos fora das orbitas. Uma melancolia infeliz, um abatimento deprimido, infunde severidade a cada um, sem exceção. Num minuto o dia que era tão bonito se cobre de cinza com ares sorumbáticos de uma ausência que promete cair pesada. E, como os demais, me quedo, inerte, boquiaberto, estatelado, embasbacado, vendo a prenda ir embora, escapando do nosso afogueamento. O reboliço da galera é uníssono. Traz a minha mente transtornada a lembrança de um gaiato balançando uma bandeira vermelha na frente de um punhado de touros ensandecidamente enfurecidos.
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 61 anos é jornalista.