Ramon na privada

Há quatro dias não tem água na cidade. Em breve será decretado estado de calamidade pública, com certeza. Ramon está em casa, sentado na privada, indeciso. Seu intestino está cheio. Comeu muita fibra ontem – brócolis, grão-de-bico, feijão fradinho, maçã, pão integral –, e à noite ainda mandou para dentro dois potinhos de iogurte grego com aveia e mel. Por enquanto está conseguindo segurar, mas já sente a musculatura anal cansada, querendo ceder, e o bolo fecal ali, bem na saída, ganhando massa, forçando passagem.

Ramon está agora decidindo o que fazer: soltar tudo ou esperar mais um pouco? Porque não sabe se terá água suficiente... Até ontem à noite tinha, mas seu filho foi ao banheiro de madrugada e dormiu em pé com o braço apoiado no botão da descarga. Ramon acordou com o barulho da cachoeira, mas demorou muito para agir. “O resto da caixa deve ter ido embora agora”, pensou. De manhã subiu ao telhado e confirmou sua suspeita.

Mas ainda pode haver água no cano. Certamente há. O que Ramon não sabe é se ela será suficiente para despachar o que ele tem acumulado no baixo-ventre, que, pela pressão que sente em suas paredes e na porta do ânus, parece ser muita coisa. Nas torneiras ainda há filetes de água, mas muito pouco.

O que fazer? Ele decide soltar tudo. Não aguenta. Seu ânus então se abre imenso e um monstro de fezes começa a sair, assumindo aos poucos a forma de um torpedo alemão da 2ª Guerra Mundial, que enche o vaso até ficar com mais da metade de sua massa marrom escura acima do nível da água – como uma montanha ou um vulcão que surge de repente no mar: uma coisa simplesmente assustadora.

Obra feita, Ramon sente agora o espírito gelado de pânico. “Nem com um balde dos grandes cheio de água isso aqui vai embora”, diz para si – e um suor frio escorre pelo seu rosto pálido, e suas mãos tremem. A faxineira está na sala limpando o sofá e certamente virá desinfetar o banheiro. Como deixá-la entrar ali com aquilo na privada?

“Mas ainda há chance”, pensa Ramon. A água no cano talvez seja suficiente. “Vou tentar”, diz. Limpa-se depressa e aperta a descarga. Como resposta, um som rouco, arrastado, seco, como o último suspiro de um moribundo centenário, surge das entranhas da casa, seguido por um chiado fino, tipo sopro de balão furado, que se extingue lentamente até a morte, e por último um estrondo, uma explosão, como um grito de horror vindo de algum abismo profundo ou do próprio inferno. E mais nada. Nenhuma gota de água. O encanamento está completamente seco.

Ramon sai do banheiro, pega três baldes e vai para a rua, desesperado, para implorar água... mas a quem? À D. Eunice, que o odeia por ele ter matado seu gato de estimação com um tiro de espingarda no meio dos olhos? Ao Seu Inácio, que nem o cumprimenta, por achá-lo metido e arrogante? À D. Lúcia, que ele quase atropelou semana passada, quando ela voltava do mercadinho, cheia de pacotes, largando-a lá no chão, com tudo esparramado, sem ajudá-la e nem ao menos pedir desculpa? Está difícil, hein Ramon!

Ramon agora está parado na calçada, esperando. Tem uma ideia. Vai ao mercadinho, compra um galão de vinte litros de água mineral, volta para casa, pega um saco de lixo na despensa, uma colher de jardineiro no quintal e dirige-se ao banheiro. Ao chegar lá, depara-se com a faxineira olhando para o interior da privada, assustadíssima. Não liga para a mulher (ela também não caga?). Tira ela dali com delicadeza e começa o serviço: com a colher de jardineiro, pega a maior parte do bolo fecal (mais ou menos um quilo de massa escura e compacta) e joga no saco de lixo; em seguida, com um balde de plástico, despeja o galão de água mineral na privada, fazendo o resto das fezes ir embora. Ufa!

Coitado do Ramon...

Coitados de nós...

(Aos leitores que conseguiram chegar até aqui, peço desculpas pelo mau gosto da história. Não resisti).

Dedico essa crônica a todos os moradores de Pará de Minas que sofrem com o racionamento de água. Não está fácil. E pode piorar.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 22/03/2014
Código do texto: T4739198
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