JANELA

“Nenhum homem é uma ilha, sozinho em si mesmo...”, é o início de uma poesia metafísica, de John Doone, que li a primeira vez quando eu tinha apenas 12 anos.

Nessa época, invariavelmente perambulava pelas ruas próximas da minha casa, quando não tinha nada para fazer, em busca de alguém desocupado que nem eu para em conjunto fazermos nada ou alguma coisa.

Na janela de um prédio de apartamentos, sempre via uma senhorinha debruçada em sua janela do terceiro andar, vendo a movimentação. De manhã, tarde e até mesmo à noite, era comum vê-la naquele local, tal qual um patrimônio histórico. Uma vez, era quase meia-noite, e passando naquela rua, juro que vi o vulto dela pela janela, como se estivesse me observando.

Nessa fase, começamos a desenvolver factoides, criar lendas pessoais e qualquer coisa que faça com que a vida fique um pouco mais divertida. E eu e meus amigos, de forma maledicente, começamos a chama-la de “bruxa”.

Já passaram quase 30 anos, e nesse tempo temos a oportunidade de ver situações sobre outra ótica. Recentemente, fui na Feira da Lua, e de onde eu estava, era possível ver a janela. A senhorinha não estava mais lá – eu acredito que ela tenha falecido há muitos anos.

Comentei com minhas filhas mais velhas que em minha adolescência eu andava por aquelas ruas, mas me incomodava demais ver elas conectadas através de smartphones com suas amigas e amigos.

Elas não prestaram atenção no que falei, só a menor que ouviu... e deve ter ouvido por que não tinha um IPhone nas mãos.

Não culpo minhas filhas por não prestarem atenção em um episódio de saudosismo, visto que o presente é muito mais interessante do que o passado.

Aliás, a atitude delas corroboram o que John Doone pregava: não somos autossuficientes. Lembrando da velhinha, eu parei para pensar o quanto ela viveu até chegar a morar em um prédio baixo, sem elevador.

Naquele momento, é que parei para pensar que talvez ela ficasse tanto na janela por que ela não podia se locomover, andar que nem eu...

O cotidiano faz com que nossos hábitos se tornem verdades absolutas e resolutas, até o ponto de que percebemos que elas estão erradas e invariavelmente convergimos para o outro extremo. Mas às vezes simplesmente não mudamos.

Aquele insight me fez analisar como a minha juventude foi diferente... Preocupávamos com a violência urbana, mas não éramos neuróticos. Tínhamos de andar até a casa de nossos amigos, pois nem todo mundo tinha telefone. Da mesma forma que analiso hoje, aquela senhorinha devia nos analisar também, só que provavelmente ela não tinha outra opção a não ser ver pela janela o movimento das folhas das árvores.

Questiono-me apenas sobre o que estamos fazendo: nunca tivemos tantos amigos, e ao mesmo tempo o significado da amizade está deturpado. Não é saudosismo injustificado, mas apenas a conclusão de que da mesma forma que estamos abertos a conhecer novas pessoas, torna-se mais difícil criarmos laços efetivos. Tudo acontece muito rápido...

Também acho que a senhorinha, se fosse hoje, não estaria mais na janela: provavelmente teria uma televisão em seu quarto, com uma programação vasta de canais... e eventualmente poderia até mesmo acessar pela internet o Facebook.

Quando Doone escreveu a poesia, o final dela falava que os “... os sinos dobravam por nós”...

Eu não sou mais o moleque que achava que a velhinha era uma bruxa, nem tampouco sou viciado em tecnologia. Gosto de informação, das facilidades e comodidades que ela nos proporciona, especialmente por ter vivido em uma época em que um computador era montado através de kits.

Hoje, eu que estou me sentindo a senhorinha... mas ao invés da janela em que ela se debruçava, eu me vejo debruçado no note, usando o Windows.

SEBASTIÃO SEIJI
Enviado por SEBASTIÃO SEIJI em 21/03/2014
Código do texto: T4737846
Classificação de conteúdo: seguro