SORVETE

O tempo é o Senhor da razão, para os incautos – que nem sempre são ímpios, mas tão somente não compartilham as mesmas crenças e convicções religiosas e espirituais.

De qualquer forma, uma das melhores lembranças da minha infância era quando ia com meu pai em uma sorveteria – tão comum nos bairros de minha cidade, e eu sempre ficava na dúvida entre escolher a massa no sabor chocolate ou no sabor creme... esses eram as únicas opções que eu gostava, já que não suportava o sorvete de morango e outros de frutas.

Por sua vez, meu pai – pessoa simples e metódica, sempre escolhia um picolé de limão... na época, eu não entendia por que ele comprava um picolé quando poderia comprar uma casquinha...

Alguns anos depois, já na adolescência, fui apresentado ao glamour das taças “artísticas” – sim, sorvete é uma forma de expressão cultural, pelo menos antes de derreter... sundae, colegial, banana slipt, hawai... o cardápio de sabores era bem mais extenso, os acompanhamentos – chantilly, cereja, coberturas, castanhas e flocos, deixavam tudo ainda mais gostoso, especial.

Mas uma coisa que me marcou foi quando eu escolhi uma banana split e meu pai escolheu outra vez um picolé... desta vez de abacaxi.

A apresentação das taças era encantadora... não serei fútil ao falar que ficava com dó de degustar verdadeiras obras de arte compostas de sorvete, pois apenas ficava com uma ansiedade maior de aproveitar cada momento...

Finalmente, depois de algum tempo, lançaram os buffets de sorvete: todos os sabores e acompanhamentos disponíveis ao alcance de nossas mãos... não era mais necessário escolher até três sabores: poderíamos misturar chocolate com morango, pistache com nozes, chantilly com castanha... na primeira vez que eu me servi, criei um amontoado de sabores cobertos pela inacreditável cobertura de chocolate quente... meu pai, naquela ocasião, se serviu de uma bola de sorvete de abacaxi e uma de outra fruta que honestamente não me lembro.

Mas o interessante é que nessa massa disforme gelada, simplesmente não era possível discernir gostos e sabores... era literalmente uma maçaroca... era bom, mas não precisava de tudo aquilo para me satisfazer.

Meu pai já faleceu há muitos anos... e eu deixei de ser filho, e me tornei pai.

Essa introdução é uma mera introdução sobre as pequenas descobertas que fazemos em nossa vida, e no exercício do arbítrio... mas por que usar sorvete para adentrar no assunto ?

Simplesmente por que é gostoso...

Lembro de meu pai, e hoje eu compreendo porque ele sempre escolhia o trivial: é por que esse era o gosto dele... simples assim.

Mesmo com outras opções, ele escolhia o que gostava... somente agora entendo que isso não significava que ele só escolhia aquilo que apreciava, mas sim que já teve experiências suficientes para saber aquilo que não queria e especialmente o que mais lhe dava prazer.

Eu preciso seguir a mesma trajetória dele ?

É claro que não... eu não preciso ser semelhante a ele para me inspirar nele... e com isso, vou seguindo a minha trajetória.

Quando eu era criança, não tinha muitas escolhas para fazer, apenas o básico como simplesmente escolher uma massa de sorvete entre três sabores... para que foi é meu contemporâneo, vai lembrar que antigamente as crianças simplesmente faziam aquilo que os pais mandavam... e confesso que não fiquei traumatizado.

Na adolescência, surgiram as primeiras responsabilidades, e algumas escolhas que poderiam interferir em nosso futuro. É o paradigma da taça de sorvete... um ideal que deveríamos seguir. Forma e conteúdo, com uma bela apresentação visual. Isso seria a projeção idealizada de nosso futuro...

Mas a vida adulta chega, e mesmo quando não estamos preparados, somos obrigados a tomar todas as decisões, fazer as escolhas... nesse caso, nada mais caótico do que ter a disposição mais de quarenta sabores e sessenta acompanhamentos... nossa vida é um buffet de sorvetes.

E pior: com raras exceções, o resultado de nossa gula é um completo e complexo emaranhado de sabores que se confundem, além de uma apresentação visual que esbarra no mal gosto – nesse último caso, resultado da nossa falta de habilidade em usar algo tão simples como uma colher de sorveteiro.

O arbítrio é saber escolher o que queremos...

Mas escolher o que é melhor para nós é o resultado de anos de vivência, sendo que em alguns casos é mera sorte mesmo – eu acredito em graça e benção.

Em síntese, a lição que aprendi com meu pai é saber o que queremos, o que vai nos satisfazer... se com as experiências que ele teve ele escolhia sempre o mais simples, é por que sabia que isso o deixaria feliz.

Bem... no meu caso, eu descobri que gosto de um sundae de chocolate, com as coberturas de praxe e disposta na taça como se estivesse pronta para uma sessão de fotos de publicidade... de vez em quando, podemos nos dar ao luxo de escolher vários sabores, mas me dou por satisfeito de ter exatamente aquilo que me satisfaz...

SEBASTIÃO SEIJI
Enviado por SEBASTIÃO SEIJI em 20/03/2014
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