A PARTILHA DO PÃO

Eu não sei rezar. Deixei ir com o tempo todos os Pai-Nossos, todas as ave-marias e orações de anjo aprendidas ao longo da infância. E tive infância? Apenas sapatos surrados, bola de meia e meia colcha para cobrir corpo raquítico. Não sei mais pedir “o pão nosso”, não sei pedir o que nunca tive, até porque, por sua vontade, como muitos dizem: É a vontade de Deus, o pão sempre me faltou enquanto fez sobra e volume na mesa do outro. Sempre injusta essa divisão e a diversão de tudo é apenas o vazio de mim e da vida; que seque, agora, o mar, porque em mim não existe espaço para alagamento. Tenho pouco sentimento, menos ainda vontade de curvar os joelhos ou baixar a vista. Não quero fazer isso e não vou fazer. Se ao menos tivesse força ou dentes para descascar essa laranja... Tossi, veja, não pode ser ouvida porque é grande o meu calvário e insuportável o peso da minha cruz, o que não são coisas imaginárias: fui preso aos dezenove anos. Roubei, não nego, uma sacola de pão na venda da esquina e de quina fui pego antes mesmo de poder dividi-los com meus irmãos, no total oito, mais novos que eu. Pai estava, na época, sem trabalho por ter cortado a mão trabalhando de lenhador e mãe tomando de conta de nós com as lavagens de roupa dela. Naquela manhã não tinha nem brasa para o fogo e mãe pediu que saíssemos da frente dela, cada um tentasse se virar pra comer. Caiu no choro e eu caí no mundo. Vi fácil e tentei ir pelo caminho mais fácil. Pego, o velho da venda me chamou de ladrão, mas eu não era, apenas a fome me fez cometer delito. Preso. Acusado de entrar na venda, roubar os pães, uma quantidade de dinheiro e ameaçar o dono com a faca. Tudo invenção, mas negro, pobre e sem estudo é ouvido onde? Desci de camburão para a cadeia pública e nunca que minha mãe, pai ou irmão viesse me visitar. Em casa faltava tudo, mas nada comparado aquele lugar. Dormir no chão depois de ter raspado a cabeça e os pelos do corpo, vestido uma roupa igual a outros tantos jogados ali por coisas piores. Tornei-me igual a tantos outros que ali não precisaram ter pai enfermo, mãe cansada e irmãos famintos para cometer infração. Usar privada na frente de muitos e nem ter papel nem água para fazer o asseio. Acordado no meio da noite pela urina de muitos outros que dividiam a cela comigo. Líquido quente a entrar pela minha boca, nariz, olhos e nenhuma palavra poder dizer. Era as boas vindas aquele inferno chamado por lei de espaço de ressocialização. Não roubei, não peguei dinheiro, não ameacei ninguém, mas roubaram-me a liberdade, ameaçaram-me a dignidade, não tive direito a partilha do pão. Quanto tempo ali? Não importa, tempo suficiente para ser esquecido. Usaram meu corpo como puderam. Apagaram meu nome de registro. Deram-me outra identidade. A ordem para conseguir escapar é ser igual ou mais forte. Aprendi o que é sorte, a ter sorte no meio da imundície, da degradação humana, do descaso e submundo dos esquecidos. Ódio, fuga, retornos, outras escapadas, novos delitos, castigos, condenação. Outras lições, nenhuma oração, cada um por si e morra os fracos, sobrevivam os fortes. Não sei rezar, não preciso de proteção. Se é a vontade de... Não importa, não preciso mais de partilha de pão.