Negócios da China

Neste início de maio está fazendo um friozinho capaz de desestimular o banho matutino. Tomo coragem e pulo n’água, como se mergulhasse num mar profundo. E me submeto conformado às intempéries. O sabonete caí e eu o olho do alto, sem vontade de apanhá-lo, tendo que me curvar e retirar boa parte do corpo do cone de água morna que cai do chuveiro elétrico.

Mas o que importa? Não estou tão sujo assim que não possa dispensar um sabonete. Tomo banho só com a água, a pura água captada no rio Paraíba, vala suja de dejetos, água tratada com muito trabalho.

Com esforço recupero o sabonete. Gostaria de ficar nesse banho por uma eternidade. Quem vai sair de casa tão cedo? Pode se atrasar vamos, saia do banho e volte para a cama. Mas, qual, obrigação é obrigação, e saio em meio à névoa, o sol fraco como se renegasse o propalado efeito estufa.

E vamos lá, rumo ao trabalho. Outro dia vi uma entrevista do falecido Darcy Ribeiro, um dos poucos intelectuais brasileiros que já admirei, onde ele declara que uma das melhores coisas da vida é o trabalho, “pois o trabalho nos obriga a sair de casa e negociar com as outras pessoas”.

Confesso que nunca havia pensado dessa forma. Para mim o trabalho sempre foi muito chato, algo a que a gente se submete a contragosto, porque precisa de recursos, e, quem sabe, algum dia se aposentar, obtendo, finalmente, a liberdade. Mas quando chegar esse momento sublime, você já estará velho, mal querendo tirar o pijama e sair da cama.

E negociar com outras pessoas é igualmente chato. Não para o Darcy: todo o mundo o adorava. Ele saía de casa para dizer: vamos construir um sambódromo ali, vamos fazer uma universidade acolá, e todos batiam palmas. Mas eu, um reles trabalhador sem graça, quem vai querer me ouvir, mesmo que esteja inovando o comércio com os chineses?

E é assim que o tempo vai passando. Um dia acorda-se, toma-se o banho com a pressa de sempre e encara-se um rosto estranho no espelho, enquanto se barbeia. Um velho está do outro lado, reclamando também do tempo e do pão com café-com-leite mastigado às pressas.

E é nessa hora que refletimos sobre o sentido de tudo. Trabalhar até quando, Catilina?

Acho que vou deixar crescer a barba.