Crônicas Urbanas – Pesadelos Metropolitanos - Instinto de Sobrevivência

O vento e a garoa bateram no rosto dela. Aquela sensação de frio, vinda com o vento, fez com que tremesse o corpo inteiro. A chuva, amena apesar de constante, molhou o rosto enrugado e maltratado pelo tempo e pelo trabalho pesado como diarista. O lenço amarrado na cabeça para proteger da chuva começou a molhar tirando a cor viva das flores e folhas nele estampado.

Ela desceu o primeiro degrau desajeitadamente, se equilibrou um pouco e largou uma das sacolas de plástico com um logotipo de supermercado impresso em um branco desbotado. A sacola estava cheia de latas de alimentos que a mulher a qual tinha trabalhado aquela tarde havia lhe dado. Coisas que estavam com a validade para vencer como extrato de tomates, feijão em lata, cremes de leite, seletas de legumes, mas, apesar disso, ela se sentia feliz por que iria dar uma janta diferente para os netos e para o filho desempregado que, ainda, passava as noites na porta da agência de emprego do governo atrás de alguma coisa.

Arrumou o casaco velho e quase rasgando, fechou para proteger o pescoço. Pegou a sacola com a mão esquerda e se encaminhou para a parada de ônibus. O vento açoitava as pernas como se fosse um chicote e penetrava na meia calça que ela usava. A calçada, irregular e molhada, dificultada, ainda mais, o seu equilíbrio. Ela tentou olhar o velho relógio em seu pulso, sob a manga do casado, mas o peso das bolsas a impediu. Tinha que acelerar o passo por que, se perdesse o ônibus, teria que esperar por mais de uma hora na parada e ela queria chegar em casa o mais rápido possível.

Quando se encontrava há uns cinquenta metros, para seu desespero, viu o ônibus saindo da parada. Em vão, tentou chamar atenção do motorista que a ignorou totalmente e seguiu o seu trajeto regular. Ofendendo-se mentalmente, ela continuou e, ao chegar, colocou a sacola de plástico com a comida na calçada, sob a proteção do teto do lugar, que de nada adiantava, pois continuava a se molhar.

Ela estava cansada. As pernas e as costas doíam pelo esforço diário. Já não tinha mais trinta anos e o peso dos seus sessenta anos se manifestava em seu corpo pela lentidão das ações, mas continuava sendo muito requisitada para o trabalho de limpeza na casa de clientes.

- Quietinha, dona – ela ouviu nas suas costas. Sentiu alguma coisa encostar no casaco e não teve coragem de virar-se para ver quem era.

- Passa a bolsa, o celular, o que tiver de dinheiro – falou um outro rapaz enquanto arrancava os seus pertences dos braços.

- Olha só, cara, o que a gente encontrou. Comida, meu.

Ela, paralisada, sentiu muita raiva pela impotência da situação.

- Por favor, deixa essa comida, são para os meus netos. Leva o que vocês quiserem, mas só deixem o cartão de passagens e essa sacola – suplicou para o assaltante. – Eu sou pobre que nem vocês.

- Só tem merda nessa bolsa. Não tem dinheiro, não tem nada que preste. Só coisa de velho mesmo – observou um dos assaltantes. Ele jogou a bolsa contra ela.

- Vamos lá, vovó, onde é que tá a grana? Vai me dizer que não tem um celular que valha a pena a gente levar? – perguntou o ladrão que antes estava atrás e passou para a frente a ameaçando com uma faca de caça.

- O que eu tenho está tudo aí, moço. Eu disse que eu sou pobre. Eu não tenho nada além do que vocês estão vendo – respondeu ela com os olhos cheios de lágrimas.

- Mas isso não dá pra nada. A gente não tem nem como vender essas merdas – praguejou um deles enquanto esvazia a outra sacola de supermercado com roupas velhas doadas. – Isso aqui, nem mendigo quer.

- Porra, meu – gritou o que estava com a faca no pescoço dela. – Não precisa chinelear também. Deixa as roupas dela dentro da bolsa.

- Qual é, mané? Agora vai ficar me dando ordem? – gritou o segundo assaltante se levantando. – Cala a boca, caralho, que a ideia de assaltar essa velha foi tua.

- A gente taca na fissura, meu. Foi o que a gente encontrou. Tá chovendo, seu cuzão. Ninguém sai com dinheiro numa noite dessas. Aliás, seu bosta, ninguém sai numa noite como essa – respondeu o assaltante esquecendo dela e tirando a faca debaixo do seu queixo.

Ela tremia. Os dois discutiam entre si, se ofendendo. Estava assistindo atônita, sem saber o que poderia acontecer com ela. Não tinha nada a oferecer para os dois meliantes que mal tinham saído da adolescência. Toda a situação era caótica: a briga entre os dois, o vento batendo nas roupas encharcas pela chuva e pelo suor que escorria dos seus poros por causa do medo. Lentamente, se abaixou e pegou a bolsa de forma que eles não percebessem. A agressão, inicialmente verbal, estava se tornando física com um empurrando o outro para o meio da rua e ela poderia tomar isso como vantagem. Enquanto eles tinham esquecido dela, começou a juntar as latas de comida dentro da bolsa, as roupas doadas que estavam molhadas pela chuva, as chaves da casa.

De repente, um dos assaltantes viu o que ela estava fazendo e, de longe da calçada, gritou:

- O que é que tu tá fazendo, dona? Quem disse que tu podia juntar essa merda toda do chão?

- Deixa ela em paz, meu. Não tem nada pra gente levar, caralho. Deixa a velha na parada com as tralhas dela – gritou o outro.

- Eu deixo se eu quiser, ouviu, seu filho da puta – gritou se aproximando da calçada. – Se manda, seu frouxo desgraçado. Eu vou tirar o que eu puder dela.

Neste momento, o ladrão que estava longe, correu na direção do que caminhava para a calçada, e o acertou nas costas violentamente.

- Não xinga a minha mãe, caralho – gritou furioso. Acertou um chute enquanto o outro escorregava no asfalto molhado. – Eu vou te matar a pau, tá me ouvindo?

Esse é o momento, pensou. Os dois marginais estavam brigando entre si e ela poderia tentar escapar. Não pensou duas vezes. Agarrou a bolsa contra o peito, com as duas mãos, e começou a correr na direção oposta dos dois. As pernas cansadas não alcançavam a velocidade que ela queria. O peito explodia ofegante. Tinha que se concentrar para não tropeçar e cair. Ela sabia que, das duas uma: eles correriam na direção oposta a dela; ou, correria atrás dela. E, pensou friamente, era uma escolha mais acertada por que poderia encontrar a polícia e descrever os rostos dos dois.

- Olha lá, a velha tá fugindo – ela ouviu. – ‘Bora pegar ela, cara.

A aflição tomou conta dela mais ainda. Eles a alcançariam certamente. Estava dando o máximo de si, mas não conseguiria escapar. Não tinha fôlego para gritar por socorro. Entrou na primeira esquina que viu e, enquanto corria, percebeu que estava numa rua com prédios habitacionais em construção.

Ela ouvia eles gritando e se ofendendo, mas não queria olhar para trás. Não queria saber o quanto de vantagem tinha dos dois. Só queria correr para salvar o pouco que tinha e a sua vida. Rezava para que Deus a salvasse por que era o único sustento da família e Ele tinha que ser misericordioso com ela nesse momento. Entrou num corredor entre os prédios em construção. A escuridão a pegou repentinamente e, quase, não conseguia ver nada. Continuou a sua marcha tropeçando em pedaços de concretos, arames, tijolos quebrados que se acumulavam no chão. E a chuva aumentou. Ficava cada vez mais difícil continuar. Os olhos dela começaram a se acostumar com a falta de luminosidade e viu a porta de um dos prédios e entrou. Se escondeu num dos apartamentos, procurando um canto escuro em que a pouca luz que vinha dos postes não a denunciasse.

Sentou no chão coberto de detritos e cimento. Ela se encostou na parede o máximo que pôde, forçando o seu corpo para ocupar o mínimo de espaço. Estava com o ponto de vista do corredor e poderia ver caso algum deles entrasse no prédio. Respirou aliviada por alguns segundos e teve tempo de raciocinar sobre o que tinha feito. Era uma loucura. Ela fugiu de dois assaltantes mas, agora, estava sendo caçada por eles.

De repente, ela ouviu sons. Passos rápidos que pareciam vir das escadas da construção. Tapou a boca com as duas mãos, o mais forte que pôde, e se forçou a respirar, somente, pelo nariz. O som de alguma coisa se movimentando na escuridão voltou, só que mais próximo. Apesar de tentar controlar a sua respiração, o coração batia acelerado e ela sentia que o pó acumulado no cômodo penetrava em suas narinas as secando. Sentiu vontade de tossir, mas conseguiu controlar.

Para sua surpresa, ela viu uma sombra parar na porta. Uma pessoa, deduziu, alta e meio curvada. Um cheiro forte de urina invadiu o lugar. Os olhos se arregalaram, por alguns segundos, tentou diminuir a respiração. Não podia ser descoberta. Sabia que viraria notícia de jornal na manhã seguinte. Mas, a pessoa no corredor se moveu para a saída do prédio.

Uma batalha começou a ser travada na sua mente. Dois sentimentos, ambos em caráter de sobrevivência, lutavam entre si: ficar ali ou tentar fugir, correr para a rua e pedir ajuda. Estava muito cansada e a bolsa pesava e isso dificultaria uma nova fuga.

Mas não poderia ficar ali. Tinha a segurança de que, pela falta de luz, estaria protegida, mas, ao mesmo tempo, sabia que, caso a encontrassem, a matariam ali mesmo.

Reunindo o pouco de forças que tinha, ela se ergueu para olhar pela janela sem vidros. Abaixada, conseguiu perceber que não tinha nem sinal dos dois andando pelo lado de fora. Mas, novamente, o cheiro de urina e sujeira invadiu o cômodo, só que mais perto. Lentamente, voltou a se abaixar, se colocando contra a parede, mas de costas para a entrada. Se eles a tivessem descoberto, queria que a matassem sem que ela os visse novamente. Então, ouviu uma movimentação rápida saindo pela porta.

Se sentiu segura o suficiente para sair do apartamento. Antes de sair do prédio, ela esgueirou a cabeça para fora a procura de alguma coisa que mostrasse onde os marginas estavam, mas, nada encontrou. Começou a caminhar, lentamente, pelo terreno irregular e lamacento entre os prédios. Espiou para fora da viela e, novamente, não os viu.

Naquele momento, se convenceu de que não estava mais sendo seguida. Olhou para a frente e viu um aterro e, além do aterro, identificou uma avenida, pela movimentação dos carros. Para chegar lá, só teria que atravessar o aterro. Calculou que seria o caminho mais rápido. Também, percebeu que havia parado de chover, apesar das nuvens continuarem um cinza leitoso ameaçador. Mas, o vento continuava impiedoso. Caminhou o mais rápido que pôde até a entrada do aterro e o som do tráfego e das buzinas fizeram o seu coração se acalmar um pouco.

- Olha lá a velha, cara – ouviu sentindo um arrepio na espinha. Reconheceu a voz do ladrão.

- Isso mesmo, vó, foge – gritou o outro. – Antes era por necessidade, agora, é por diversão. Corre, vó, que a gente vai te pegar.

A gargalhada dos dois ecoou pelo terreno.

Ela voltou, desajeitadamente, a correr por entre as montanhas da lixo. Dessa vez, olhou para trás e conseguiu vislumbrar as duas silhuetas correndo na direção da entrada do aterro, gritando e festejando por que a haviam encontrado. Continuou a sua fuga, mas percebeu que não conseguiria chegar à avenida antes que eles a alcançassem. Só tinha uma opção: se embrenhar no meio do lixo, ficar escondida e rezar para que os dois não a encontrassem. Não pensou duas vezes, se atirou num dos montes, se cobriu com o máximo de lixo que encontrou e ficou quieta.

O cheiro da sujeira exalada pelo material em decomposição quase a fez vomitar. A adrenalina fazia com que ficasse em alerta a qualquer movimento, mas ela se negava a olhar para cima ou para o lado para descobrir o que era. Até mesmo o barulho das moscas varejeiras tinha se tornado quase ensurdecedor.

- E aí, vó, vai continuar brincando com a gente? – ouviu.

Para eles, era somente uma brincadeira. Tinha se tornado um jogo e ela seria uma história para eles contarem para os amigos.

De repente, sentiu que um pouco de lixo – latas, sacos plásticos com papel higiênico – rolaram de cima do monte onde se encontrava escondida. Não se mexeu, mesmo quando uma lata vazia de tinta para pintar paredes acertou as suas costas. Movimentou levemente a cabeça para cima e notou que um deles estava no topo do monte de lixo onde ela se encontrava escondida. Fechou os olhos e começou a rezar baixinho pedindo por si e pela família que estava em casa.

Ele continuava a se divertir com a situação, gritando para ela.

Neste momento, ouviu um som seco, como um baque, e sentiu que o monte de lixo se moveu ao seu lado, quase desmoronando. Um grito abafado chegou aos seus ouvidos junto com o barulho de algo viscoso sendo arrancado. Não entendia o que estava acontecendo. Não conseguia, e não queria, se mover dali. Quando, o que parecia ser uma cabeça, foi jogado ao lado dela, ela tremeu. As luzes dos carros que passavam pela avenida, palidamente, iluminaram o local e ela pode ver dois olhos negros arregalados fixados nela e a boca aberta com sangue escorrendo e mais nada. Uma cabeça sem corpo.

O horror da visão fez com que ela levantasse do meio do lixo. Ficou perplexa. Sabia que deveria fugir, mas não conseguia por que, além de estar cansada, estava paralisada pelo medo. Tomou a decisão de correr na direção da avenida. Não sabia o que estava acontecendo e não queria saber. Ia tentar escapar desesperadamente. Os músculos cansados e a fadiga fizeram a tarefa de se levantar se tornar algo quase impossível.

Caminhou o mais rápido possível para o lado oposto do aterro sanitário que a levaria para a avenida. Subitamente, ela encontrou o corpo de um dos seus perseguidores no chão, decapitado. Parou instantaneamente diante do cadáver.

- O que foi que tu fez com o meu amigo? – gritou o outro há uns metros na frente dela.

Lentamente, ela levantou a cabeça, mais surpresa que o ladrão e balbuciou:

- Eu... Eu não fiz nada – respondeu ela. – Eu achei ele assim.

- O que foi que tu fez com o meu amigo? – repetiu ele correndo na direção dela.

Vindo de cima de uma das montanhas de lixo, um ser indefinível pulou na frente dele o fazendo parar bruscamente. Parecia uma mistura de homem com um rato gigante. Ao menos, era o que os dois podiam deduzir. Tinha membros de um homem, mas tinha um pelo eriçado cobrindo o corpo, e a cabeça, em perfil, parecia com a de um rato enorme. Lentamente, a coisa se levantou sobre as patas traseiras, parecendo ter mais de dois metros de altura e avançou sobre o ladrão. A enorme boca pegou o pescoço e o som de ossos quebrando se fez ouvir pelo ar.

Recuperada do choque, o instinto de sobrevivência fez com que ela se virasse e começasse a correr novamente. Entrou pelo alto mato desesperada. Ela olhava para os carros passando através da cerca de arame e a distância, à medida que ela corria, abraçada, ainda, na bolsa, parecia aumentar. Teve que parar um pouco. O peito ia explodir novamente e sentiu umas fisgadas internas entre os seios. Arriscou a olhar para trás e não viu nada além dos montes de lixo de destacando na escuridão.

Começou a caminhar rapidamente por que já não conseguia mais correr. A imagem daquilo que ela tinha visto estava fixa na usa mente. Ela não sabia o que era. Nunca, sequer, tinha ouvido falar de algo assim. Enquanto caminhava, rompeu em pranto, num misto de desespero e alívio por estar viva. Só que, percebia que a vegetação ao lado dela era movimentada, como se alguém a acompanhasse escondido. O medo de ser a próxima a fez andar mais rápido e, nesse último esforço, conseguiu chegar um buraco na cerca de arame tramado e alcançar a calcada da avenida.

Assim que saiu do aterro, se sentiu segura. O tráfego e os faróis a deixaram mais calma. Só que, pela terceira vez na noite, o odor fétido de urina, invadiu o seu nariz. Percebendo isso, lentamente, ela se voltou para a direção da cerca que separava a avenida do aterro sanitário e viu o mato se mexer novamente.

Um arrepio percorreu todo o seu corpo. Lembrou que tinha sentido o cheiro dentro do apartamento quando tinha se escondido lá. Não tinha sido uma impressão ou uma ilusão o que tinha visto no corredor.

Lentamente, caminhou na direção de uma parada de ônibus que estava mais adiante.

James McCoe
Enviado por James McCoe em 17/03/2014
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