Agora que tudo havia terminado

Acordou no meio da noite com vontade de fumar – e só então se lembrou que já não fumava havia 50 dias. 50 dias! Sim senhor, havia motivos para comemorar. Ultimamente estava inclusive mais fácil de suportar. Já nem sentia tanta dor de cabeça como nos primeiros dias. Ah, o seu pulmão estava uma maravilha. Já não podia dizer o mesmo das suas articulações, que ainda reclamavam dos excessos da noite anterior. É a idade, pensou. Quanto tempo fazia que não dançava tanto assim? Sete anos, no mínimo sete anos. Seis anos o pai dele esteve de cama. Um ano ele ficou de luto. Só agora havia voltado a sentir motivação para dançar. E, modéstia à parte, ainda não havia perdido o suingue.

O pai. Havia sentido dois lutos por ele – o primeiro logo depois do AVC, porque desde então ele não falava, não andava, era totalmente dependente. Dispensou a ele os melhores cuidados durante os anos de internação domiciliar. Mas, agora que tudo havia terminado, sentia-se de espírito leve por ter cumprido o seu dever enquanto filho. Verdade que ainda sentia a sua falta, e até da rotina de cuidados que viveram.

Pelo menos a mãe e a tia estavam saudáveis. Vivia com as duas, já velhinhas, e um cachorro boxer. Pode-se dizer que cuidava dos três – era filho único. Mas não reclamava e sentiu-se particularmente feliz quando os encontrou na manhã daquele novo dia. Era um dia de descanso, mas ele ainda tinha alguns servicinhos para fazer na frente do computador. Lembrou que uma revista havia pedido uma foto sua. Queria mandar uma foto de cinco anos atrás, mas na época o seu cavanhaque não era branco como hoje. A mãe era da opinião que mandasse essa foto mesmo e pintasse o cavanhaque. Ele riu. No Facebook, postou “Bom dia! Bom dia! Bom dia!”. Ainda teve tempo de compartilhar a imagem engraçadinha de uma família de macacos se abraçando. Só depois é que começou a passar mal. E não houve cateterismo de emergência que resolvesse: veio o enfarte, com ele a morte.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 17/03/2014
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