Entre umas balas e outras
 

                                       No mar estava escrita 
                                        uma cidade. 
                                              Carlos Drummond de Andrade

     E devagar, devagarinho, como diz o Martinho da Vila no seu gostoso samba, eu vou sendo obrigado a deixar de ler jornais, ouvir rádios e ver televisão. 
     Você me pergunta por que, e eu respondo: porque já não aguento mais ler, ouvir e ver o constrangedor noticiário policial que cada vez mais invade esses preciosos meios de comunicação, independente de horários.
     São noticiados, com bastante ênfase e intensidade assaltos, estupros, sequestros, grandes e pequenos roubos e furtos e todo o tipo de homicídio  previsto e qualificado no nosso septuagenário Código Penal.
     Concordo com um velho companheiro dos tempos de faculdade que, quando nos encontramos, na rua, na igreja, nos shoppings, etc., etc, me confessa, apavorado:
- "É, parceiro, o bicho tá pegando. O negócio, agora, é rezar; até pra não ser atingido por uma dessa balas perdidas, que tanto podem ser do revolver do malandro como do policial."
     E completa: O estranho é que o meliante aparece sempre como dono da bala assassina. O autor do disparo." E em seguida, me mostra a medalhinha que carrega no pescoço, melada de suor.
     E nessa de violência, dia desses, a televisão passou horas mostrando a ação nefasta de criminosos em um dos morros carioca que, segundo se alardeia, "está pacificado". Eu, hein?
     De olho na TV, de repente me vi no meio do tiroteio travado entre policiais e traficantes, tão perfeitas eram as imagens colhidas, em tempo real, no cenário do conflito.      Imagens enrequecidas pela narração do corajoso repórter que, pondo em risco a própria vida, cumpria seu dever como jornalista de polícia, como se diz nas redações.
     Simplesmente desliguei a televisão e fui ler poemas de Drummond e de Bandeira, ouvindo velhas valsas, na voz de um carioca do bem chamado Orlando Silva, falecido em 1978, depois de completar 63 anos. Muito novo!
     E na calma deliciosa do meu gabinete, disse de mim para mim: apesar de tudo o que tem acontecido, os meliantes ainda não conseguiram tirar do Rio o título de Cidade Maravilhosa. - "O Rio de Janeiro continua lindo!" como em Aquele Abraço, nos anos 1960, cantou Gil.
     E por falar em canção carioca, no carnaval de 1939, o saudoso Orlando Silva numa marchinha doce e carinhosa, de sua autoria, chamou o Rio de Janeiro de "Cidade brinquedo".
 - "O Cristo Redentor é uma medalha pequenina/ No rosário imenso da colina/ Bonecas delicadas, quase todas moreninhas/ Alegram suas ruas, qual um bando de andorinhas.  =  Rio, és pequeno para os olhos meus/ Olhos que veneram os encantos teus/ Adoro o teu céu cor de anil/ És a cidade brinquedo/ No bazar do meu Brasil." A música dessa canção é de enlouquecer, porque belíssima.

     Bem antes, ou seja, no carnaval de 1935, inspirado num artigo do escritor maranhense Coelho Neto, de 1908, no qual o Rio é chamado de cidade maravilhosa, o compositor André Filho deu a uma de suas marchinhas este título: Cidade Maravilhosa.
     Cidade Maravilhosa é hoje, por força da Lei no. 05, de 25.5.1960, a marcha oficial  (hino?) da cidade do Rio de Janeiro. 
- "Cidade Maravilhosa/ Cheia de encantos mil/ Cidade Maravilhosa/ Coração do meu Brasil". Foi sucesso absoluto na voz de Aurora Miranda, a irmanzinha da Carmem.

     Um pena ver, agora, o Rio de Janeiro, na marchinha de André Filho chamada de o "jardim florido de amor e saudade"; o "berço do samba e das lindas canções" vivendo, dia e noite, entre umas balas e outras.
     São centenas cortando, de repente, o "céu da cor de anil" da "cidade brinquedo" do Brasil.
     Mas vale curtir a Cidade Maravilhosa, tomando, por exemplo, um chope no Amarelinho, um cantinho vivo do Rio antigo, na velha Cinelândia. 

                              

 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 17/03/2014
Reeditado em 19/03/2014
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