Maldição de Família
Esta crônica é baseada no filme de mesmo nome e contém spoilers. Se não quiser saber o final do filme, não leia.
Adoro filmes. Em 2007 comecei meus estudos numa oficina de cinema de horror. De lá pra cá participei de vários projetos e cursei Rádio e TV na faculdade. Gosto de filmes quase tanto quanto gosto de música. Assim como na música, onde tenho preferência por canções tristes, depressivas e trágicas, também gosto de filmes assim. Gosto especialmente daquele anti herói, um deslocado na sociedade. Ele luta pelo que acredita, mesmo sabendo que está errado. Mas no final está fadado a ser engolido pela sociedade, simplesmente por eles serem maioria. "Um Dia de Fúria", "First Blood (Rambo)", "Laranja Mecânica", "Clube da Luta", "Taxi Driver" e tantos outros.
Hoje eu assisti um filme chamado "A Outra História Americana". É mais ou menos assim. Uma família de americanos brancos vivendo na periferia. O irmão mais velho é neonazista. Agressivo, intimidador, fanático. Mas também é inteligente, corajoso e tem iniciativa. Um líder nato. Seu irmão mais novo o considera um herói e pretende seguir seus passos. Nesta periferia há uma grande inimizade entre negros e brancos. Certa noite, em casa, o irmão mais novo vê alguns bandidos tentando roubar o carro de sua mãe. São negros. Ele avisa o irmão mais velho, que pega um revólver. Ele sai à porta de sopetão e atira no bandido que estava de vigia. O que estava roubando o carro também leva tiros e cai no chão, ainda vivo. O terceiro, o motorista, tenta fugir, mas é morto. O irmão mais velho volta ao bandido vivo e o coloca na sarjeta. Manda ele abrir a boca e morder a guia da calçada. Então ele pisa com toda força na cabeça do ladrão e destrói seu crânio. Ele vai pra cadeia.
Na cadeia ele se junta a um grupo de neonazistas à procura de proteção, mas percebe que estes se relacionam constantemente com mexicanos, negros e outras raças que eles deveriam odiar. Percebe que na cadeia é tudo balela e decide abandonar o grupo, o que neste lugar é considerado um grande insulto. Ele começa a criar amizade com um negro, que é seu parceiro de trabalho (diferente do Brasil, lá os presos trabalham). Certa dia, no chuveiro, ele é violentado, espancado e estuprado pelos próprios "companheiros" neonazistas. Então ele começa a se questionar sobre temas como ideologias, companheirismo, lealdade e sobre sua vida.
Quando sai da cadeia ele é considerado um deus pela seita neonazista da cidade. Mas ele não quer mais saber disso. Na cadeia ele aprendeu o quanto aquela ideologia é estúpida e que a cor da pele ou etnia não diz nada sobre as pessoas. Ele tenta fugir deste mundo e tirar seu irmão e sua família disso. No final, o irmão mais novo é morto a tiros por um negro na escola.
O que me fez pensar tanto sobre este filme foi numa parte onde ele diz a um policial, depois de sair da cadeia: "Estou cansado de toda essa violência, de todo esse ódio. Todas as coisas que eu fiz não melhoraram em nada a minha vida, e tão pouco fizeram este sentimento ir embora. Ao contrário. Só fez o ódio crescer mais e mais dentro de mim e me consumir. A vida é curta demais pra se viver odiando".
Isso é exatamente como eu me sinto. A minha vida inteira eu só vi ódio, dor, violência e desgraça. Meu pai me xingando, me batendo e mais recentemente me ameaçando de morte. A calmaria aparente de minha mãe, que vez ou outra explode numa rajada de fúria e ódio contra mim, e todos os insultos e xingamentos que ela diz porque sabe que vai me machucar com isso. As constantes provocações, como "você é muito gordo", "você é um bêbado", "você não é nada". O meu irmão que nunca fala comigo, que sempre me xinga e sempre que tem uma oportunidade faz algo pra me prejudicar, tudo sem minha mãe ver. E quando ela vê, ele de alguma forma vira o jogo contra mim. E se minha mãe percebe isso, ela faz de conta que não percebeu. Não reclamo mais disso, porque sei que também é culpa minha. Minha família inteira, de meus pais a meus avós, têm esse diabinho incrustado que adora provocar, xingar, ofender, rebaixar, humilhar. Esse tem sido o prazer de minha família durante gerações, e eu faço parte disso. O problema é que eu só dei conta disso muito recentemente, quando eu terminei com minha namorada. Ela era de Brasília. Namoramos por seis anos pela Internet, e quando finalmente ela veio pra São Paulo, veio pra sofrer dessa moléstia que infesta nessa casa. Humilhação, brigas, insultos dos mais baixos. E foi somente quando ela foi embora que consegui olhar pra trás e ver toda minha vida. Quantas pessoas eu xinguei, fiz mal, fofoquei coisas feias. Lembrei de todas as vezes que desejei que minha mãe morresse simplesmente por não ter deixado eu fazer alguma coisa. Todas as vezes que a xinguei mentalmente de vagabunda por não ter feito o almoço. As duas vezes que eu soquei o rosto de meu irmão, quando ele tinha apenas uns quatorze ou treze anos de idade. As duas vezes que eu tentei suicídio. Os cortes que eu fiz em meus braços tentando chamar atenção das pessoas, e como isso não funcionava, eu cortava mais fundo pelo simples prazer da dor. Ah, quantas coisas ruins eu fiz na minha vida. Tenho culpa, mas não sou o único. Eu nasci numa família sem afeto, sem união, sem carinho. Não quero que me vejam como coitadinho, mas simplesmente que entendam que consigo contar nos dedos quantas vezes minha mãe me abraçou desde pequeno. Aqui sempre foi cada um para o seu lado. Aqui ninguém aceita uma opinião diferente, e tenta vencer na base do grito ou da violência. E não é só culpa de minha mãe ou de meu pai. Também é culpa da cidade onde vivo, onde tudo é disputado, tudo é corrido, tudo é pro mais forte (que em São Paulo significa o mais folgado). Me tornei uma pessoa antissocial, neurótica, agressiva e autodestrutiva. Em parte por culpa de minha família, em parte por culpa do lugar e da sociedade onde vivo, em parte por culpa de mim mesmo. Mas de que adianta sair culpando todo mundo? Que adianta dizer que Deus me fodeu, se isso não vai me fazer nenhum bem? Foram essas as coisas que eu comecei a pensar quando minha namorada foi embora, e de lá pra cá venho percebendo mais sobre meu comportamento, as coisas vão se iluminando, como se eu estivesse adentrando o Nirvana. Mas o estrago está feito. Só fui perceber isso aos vinte e dois anos de idade. Desisti de lutar em parte por falta de esperança, em parte por preguiça. Tudo é inconstante e passível de morrer. O caos é a verdadeira ordem da Natureza, e nossos esforços em estabelecer a ordem nesse pandemônio é similar ao de uma formiga frente à maré.
Mas uma coisa é certa: o meu cansaço. Estou cansado. Cansado de todo esse ódio, de toda essa competição, de toda essa raiva me consumindo e lutando pra sair de mim. Aprendi muito neste um ano que passou. Mas me pergunte se eu abandonaria a raiva? Não. Apesar de estar cansado, a raiva é a única coisa que eu conheço bem. É o meu porto seguro. Um lugar onde eu sei como vou me sentir, onde posso prever as consequências de meus atos. É por isso que não experimento o amor. Porque é a raiva que eu conheço desde minha infância. Estou cansado de sentir raiva. Mas pergunte se eu perdoaria meu irmão? Não. Eu adoraria ter um revólver e dar um tiro em seu joelho esquerdo e eu sua mão direita. Morreria feliz sabendo que o aleijei. Talvez desse um tiro no pinto pra tirar seu orgulho pro resto da vida. Pergunte se eu perdoaria meu pai? Não. Ultimamente ele está doido de pedra, e às vezes vem aqui de madrugada chutar o portão de casa ameaçando eu e minha mãe de morte. Nada me faria mais feliz do que sair na rua, socar e desgraçado e arrastar sua cabeça pelos portões de todas as casas, deixando o quarteirão pintado com seu sangue. Pergunte se eu perdoaria minha mãe? Não. Vou adorar ver quando meu irmão crescer um pouco mais, e folgado e mimado do jeito que ele é, trazer dor e tristeza pra ela. Eu vou sumir da frente dela para sempre, mas antes de sair vou dizer "eu te avisei".
Pergunte se eu me perdoaria? Não. Tenho consciência da maldade que habita em mim. É só ler o parágrafo acima pra saber do que sou capaz. E isso me enche de ódio. Saber que, mesmo num mundo bonito, onde meus pais me amassem, onde eu e meu irmão tocássemos juntos numa banda, onde eu e minha ex-namorada casássemos e tivéssemos uma linda filha que eu ensinaria a tocar música desde pequenina, mesmo no mundo que eu sempre sonhei, eu seria um inconformado, ingrato e violador. Sabotaria este belo edifício pelo simples prazer de ver tudo o que eu sempre amei desabando, sofrendo e morrendo. Torceria este amor pelo pescoço e choraria convulsivamente, mas me sentido realizado por dentro.
Assim como o personagem do filme, também estou cansado de toda essa violência, de todo esse ódio. Mas eu não moro num gueto novaiorquino. Não faço parte de um grupo neonazista. Não odeio negros. Nem sou apenas um rapaz latino-americano, e nem quero mais me lamentar. Sou um balofo feio por fora e horrível por dentro, com um monstro dormindo dentro de mim. O ódio não está só ao meu redor. Ele entrou em mim, fez de meu coração sua morada, e em troca ele me deu noites de sono. Nunca vai existir descanso. Talvez nem mesmo depois que eu morrer. Minha alma nunca vai ter descanso.
E tudo isso pelo simples fato de eu não saber amar.
Só odiar.