A Moça do Zepelim Prateado
Numa dessas manhãs chuvosas em que me dá uma vontade doida de sair para o centro da cidade a fotografar prédios antigos, estava num dos locais mais queridos para mim: a praça dos Leões. Digo praça do Leões, por se tratar do nome afetivo, autêntico, o batismo do povo, ao contrário da denominação oficial de praça General Tibúrcio.
Sentei-me num dos seus bancos de madeira, sob as árvores enegrecidas, e pus-me a pensar no tema para a crônica do jornal. Afinal, o que escreveria para vocês?
Ao meu lado, a dona Rachel de Queiroz, que por ali também curtia a fresca na praça, ria-se da minha preocupação que já não lhe estranhava. Ao pescoço, desenhava-lhe apenas um discreto colar de contas. Tinha as pernas cruzadas, os braços de Clotilde levemente pousados sob curtas mangas, as mãos sobrepostas e, com vagar, discorria:
— Divertir um pouco o tédio alheio é tão gratificante... Ah, mas não pense em escrever sobre política... Não fale em política, por favor... azeda tudo! — sorrindo, bateu as pontas dos dedos nos lábios — Cala-te boca, Rachel...
Há pouco, dizia estar contrariada. Seus óculos haviam se quebrado e, por fim, desapareceram. Agora não, com óculos novos, já enxergava melhor. Sua pele bronzeada, sentia, conferia-lhe jovialidade, certo ar de eternitude. Ah, adorava aquela praça quando estava apinhada de gente. Dali, ela chegava a sugerir livros na habitual feira do troca-troca; observava, de longe, os devotos que se chegavam à igreja do Rosário a pedir favores, a buscarem uma pazinha qualquer; admirava o róseo Palacete Brasil, de quinze, e assistia ao entra-e-sai dos alheios colegas na Academia.
Aos domingos, entretanto, quando o movimento da praça diminuía, se enfadava, tentava trocar algumas idéias com o velho general que andava sempre muito distante, austero, contando histórias de guerra, recusando a todo esforço abandonar seu posto militar. Que jeito...
— É, Raymundo, tem dia em que eu daria dez anos de vida por um pedacinho bem árido de caatinga, um riacho seco, um marmeleiral ralo, uma vereda pedregosa, sem nada de arvoredo luxuriante, nem lindos recantos de mar, nem casinhas pitorescas, sem nada deste insolente e barato cenário tropical. Vivo aqui abafada, enjoada de esplendor, gemendo sob a eterna, a humilhante sensação de que estou servindo, sem querer, como figurante de um filme colorido.
Contou-me que, vaidosa, preocupava-se com sua estampa, mas, felizmente, em seus cabelos não havia um fio sequer fora do lugar...
— Você sabe, ando que não escrevo mais. As juntas estão um pouco duras... Mas, para meu consolo, recebo tantas visitas, menino... Algumas pessoas vêm tirar fotos comigo; outras, em dias de calor, vêm repousar a cabeça em meu colo... Dizem que é geladinho — sorrindo, corou a pele firme — outros, embora nem me conheçam, se apresentam, chamam-me por “minha tia”, sentam em meu banco. Repare, além de uma cadeira, agora ocupo um banco... — graceja — e olhe que pouco sei falar em coisas delicadas, em coisas amáveis. Sou uma mulher rústica, muito pegada a terra, muito perto dos bichos, dos negros, dos caboclos, das coisas elementares do chão e do céu.
Voltou-me a falar da crônica. Perguntou-me sobre a derradeira. Avivava os olhos com interesse e disse-me, segurando pelas mãos, que vez ou outra haveria de não agradar, que ninguém neste mundo era perfeito, que todos tínhamos as nossas opiniões obstinadas e que havia, naturalmente, muito pé para discordância. Mas, se isso acontecesse, nem seria preciso fazer as pazes com vocês, jornaledores, pois, em seus corações, assim como no meu, só haveria espaço para amizade e silêncio.
Fazia-se tarde, despedi-me, ela franziu a testa:
— Ah, não me deixes, querido...
— Ora, dona Rachel, a senhora não sabe que eu sempre volto?
— Sim, é verdade, você sempre volta... mas é que eu tenho saudade de poder chorar “as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos” como uma Tangerine-girl...
Rachel de Queiroz (1910-2003), cearense, a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras, autora dos romances O quinze e Memorial de Maria Moura, dentre outros, além de contos como Tangerine Girl, também foi cronista do jornal O POVO. Alguns dos trechos acima foram extraídos de sua primeira crônica, a Crônica nº 1, escrita para a coluna Última Página, na revista O CRUZEIRO, em dezembro de 1945.
Raymundo Netto é escritor, autor do romance Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, membro do Conselho Editorial de CAOS Portátil – um almanaque de contos. Contato: raimundo.netto@globo.com
Fortaleza, Ceará, 05 de março de 2007 (Crônica publicada no Caderno Vida & Arte do Jornal O POVO)