VIDA SIMPLES, MAS FELIZ!

Lêda Torre

Às vezes, me pego absorta em meus pensamentos meditando sobre a vida pacata de uma cidadezinha do interior do sul maranhense, dita Colinas. Fica entremeada por colinas e depressões, banhada por um rio de águas esverdeadas, límpidas no verão, barrentas na estação das chuvas, o nosso marcante Rio Itapecuru, nos idos anos de infância... dá uma saudade danada daquele tempo, sem que eu consiga compreender o porquê dessa saudade que me toma de vez em quando, lembrando que hoje esse mesmo Itapecuru morre lentamente...com os desmandos do homem, que o arrefece a cada dia, tornando-se em apenas um quase riacho...

O que consigo dizer é que naquela época, éramos felizes e não sabíamos. Felizes por quê? Moramos num casarão antigo de 1918, enorme, de compartimentos avantajados, de varanda, um saguão cheinho de plantas de nossa mãe, vulgo ”florestinha”, um quintal povoado de galinhas, patos, perus, pintos, frangos, guiné, dentre outros; um porquinho quase sempre num chiqueiro feito de ripas mal feitas, mas, ali uma vida simplória, onde era tudo perfeito aos nossos olhos... fruteiras variadíssimas...para todo gosto...

Conforto? Quem falou de conforto? Nenhum! Na cozinha um fogão à gás marca Butano, que chegava por encomenda através de vendedores ambulantes, porque ali na velha cidade semiurbana, não havia lojas, era utilizado apenas para se fazer comidas especiais ou assar bolos. A princípio poucas famílias possuíam geladeira, à querosene ou á gás, isso lá era coisa de gente rica....era esse nosso palavreado. Mas logo num canto da vasta cozinha o velho fogão à lenha...formado de uma chapa de ferro grosso, local da lenha ou carvão, pronto para cozinhar todo tipo de comida...

Para beber a nossa água era vinda do rio, em ancoretas num burrico ou jumento, que era mais comum, na velha bilheira de madeira colocava-a nos potes de barro, pois, o filtro nem pensar! Aguinha coada num pano de saco de algodão. O filtro, esse viria bem depois; os copos tinham de ser bem ariados com sabão de coco babaçu e areia do rio, bem fina que os fazia brilhar impecavelmente! Tudo no muque, na munheca mesmo. Não existia esse negócio de palha de aço marca Bombril ou outra ou mesmo o líquido limpol ou pasta que ajudasse lustrar os alumínios de dona Creuza, não.

Quando se acendia o fogo, a fumaceira que tomava de conta do ambiente laboral, ardia nossos olhos, entranhava nas nossas unhas o pó do carvão ou da lenha, dissipava-se tão logo o braseiro estivesse bem quente, prontinho para dar cozimento à comida da casa. Parecia ser mais gostoso os pratos preparados e cozidos nesse tipo de fogo, nas panelas de ferro, cujo arroz misturado com feijão chegava a ficar roxo, só de ferro. Parece que naquele tempo nem anemia o povo sentia, com tanto ferro na comida... Foi-se esse tempo de tudo isso... Hoje só as lembranças...

No café da manhã, aquele leite de vaca, em que a gente comia a nata, com cuscuz de xerém de arroz, moidinho no pilão, cozido no pano e a vapor de uma panela com água, o café preto torrado com rapadura da cana e moído. Ou se não fosse o cuscuz de xerém, seria do milho ralado num ralo feito de flandres perfurado por pregos...ou então bolo de puba, ou de tapioca, ou bolo de macaxeira, ou grolado da farinha da mandioca já puba. Bem depois, com o progresso, o café era torrado nas torrefações, o que com isso já facilitava nosso labor.

O azeite de coco babaçu completava o sabor do cuscuz ou do beiju de tapioca. Inacreditável, uma vida simples e feliz, crescemos sonhando em um dia ir para a capital São Luis, ou outra cidade maior, para continuar os estudos, talvez encontrar um esposo e se casar depois de formado. Aquela vida tão simplória não era o bastante na nossa cabeça, hoje é que vemos assim...Mas naquele tempo, aquilo não era vida de gente, tudo muito difícil...

Minha mãe, costureira e enfermeira, mãe dedicada, nos ensinava tudo da vida, ouvíamos bem direitinho, obedecendo às suas ordens, e ai de algum de nós, se ousasse desobedecer. Preparava-nos com o maior desvelo e carinho, cada comida! As nossas roupas, nossos velhos chambres de dormir, foram feitos de chita ou outro tecido simples. Os livros que estudávamos, não eram descartáveis, sendo reaproveitados pelos irmãos mais novos que iam progredindo ao longo dos anos. Ninguém tinha mochila, material escolar de marca, lanche especial, sapatos da moda, fardas sofisticadas, nada disso. Nossos livros eram encapados com o papel que vinha da quitanda enrolado com açúcar; ou jornal velho que por algumas vezes meu pai trazia de algum assinante amigo seu, ou de revistas velhas.

A princípio fomos crescendo e sonhávamos um dia ter uma cama cada um. Isso era quase impossível, pois oito filhos, não era nada fácil. Minha mãe, mesmo funcionária do estado, da saúde, demorava quase um ano para receber seu salário, o governo do estado naquela época, só pagava os funcionários, atrasado. Além de parcas condições financeiras, a despesa pesava muito. Ainda assim, mamãe trabalhava sempre feliz e satisfeita; sendo inclusive muito procurada pelos pacientes, pela qualidade dos seus préstimos profissionais, como pelo seu modo caridoso de ser.

Nossa dormida fora por muitos anos em redes fiadas de algodão e lona de algodão. Talvez seja por esta razão que até hoje curto muito uma rede. Nossos lençóis de algodãozinho ou de pano de saco, uma delícia de macio, porque quanto mais se lavava, mais macio ficava. Como era gostoso esse tempo de nossas existências.

Ainda cheguei a ouvir novela de rádio, cada uma linda! Depois foi que veio a Televisão em preto e branco, um sucesso; embora mesmo com antenas, as imagens eram chuviscando, e apesar de todo esse panorama, a felicidade transbordava em cada um de nós. Brincamos muito, crescemos com dificuldades financeiras, mas nunca deixamos de ter dignidade, nem de estudar, nem de saber servir ao semelhante. Vimos que não é preciso muita coisa para ser feliz.

Neste relato, representei o viver de muito maranhense, de muito nordestino. Hoje se tem tudo e a felicidade anda bem longe das pessoas... Parece que nada satisfaz a ninguém.

As mães normalmente ensinavam as meninas a se prepararem para serem donas de casa. Aprendia-se a cozinhar, a costurar, a bordar, a pintar, enfim, a fazer tudo de dentro de uma casa, como mãe de família. Aprendi cedo e minhas irmãs. Fazíamos de todos os afazeres de casa, sob as ordens de Dona Creuza. A escala semanal era preparada e tinha de ser cumprida. Assim foi. A organização, limpeza, a responsabilidade, enfim, eram aprendidos os valores par nunca nos esquecermos de nada.

Ser feliz, realmente não custa muito.

_____São Luis, 09 de março de 2014______-

Lêda Torre
Enviado por Lêda Torre em 13/03/2014
Reeditado em 23/06/2021
Código do texto: T4727652
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